Depois de “o nosso reino”, “o remorso de baltazar serapião” e “o apocalipse dos trabalhadores”, valter hugo mãe continua com “a máquina de fazer espanhóis” - no que aos romances diz respeito - a sua jornada literária na evocação de vidas comuns, que são as que no fundo mais sentimos e mais nos dizem respeito.
Neste livro, e apesar do título, valter hugo mãe escreve sobre Portugal e acima de tudo sobre o que é ser português, ou de como por vezes Portugal parece ser uma máquina adormecida no tempo e que acordando de um marasmo sonolento só sabe fazer espanhóis.
Tendo como personagem principal o Sr. Silva, nome não escolhido ao acaso e comum a muitas outras personagens do livro, o autor faz-nos vivenciar a sua história - que é talvez a da maior parte de nós no futuro - e a história dos seus fantasmas, e as histórias e os fantasmas dos novos companheiros do Sr. Silva no lar Feliz Idade para onde é levado pela filha.
A partir da entrada no lar são ternas histórias as que se vão sucedendo e que se vão lentamente aproximando do fim, vidas que vão trocando de quartos, numa magnífica metáfora da própria vida, como se os “inquilinos” do Feliz Idade, aos oitentas anos, regressassem ao banco de suplentes depois do aquecimento não havendo no entanto nada a seguir: nem jogo (?a vida?), nem jogadores (?os que vão primeiro?), nem sequer o árbitro (?Deus?). Apenas o Cubillas na parede do quarto da D. Leopoldina.
valter hugo mãe fala-nos também – porque é de falar que se trata por vezes – dessa coisa estranha que é ser velho nos dias de hoje. Do que é perder muitas vezes a dignidade e ser encostado na borda do prato depois da sociedade os ter chupado até ao tutano do osso. Como diz o Sr. Silva, “pegaram em mim e puseram-me no lar com dois sacos de roupa e um álbum de fotografias. foi o que fizeram. depois, nessa mesma tarde, levaram o álbum porque achavam que ia servir apenas para que eu cultivasse a dor (...). depois, ainda nessa mesma tarde trouxeram uma imagem da nossa senhora de fátima e disseram que, com o tempo, eu haveria de ganhar um credo religioso, aprenderia a rezar e salvaria assim a minha alma”.
E se é verdade que as pessoas sendo diferentes reagem normalmente de maneira diferente, é também verdade que o medo da morte pode levar a sentimentos semelhantes, e é assim que podemos assistir às traquinices de dois velhos de oitenta anos de mãos dadas a espreitarem de madrugada os quartos uns dos outros, como se regressassem a uma infância saudosa. Um dos pontos altos do romance é o delicioso diálogo entre o Sr. Silva e o Sr. Pereira que retrata esta cena.
Atingindo uma maturidade autoral significativa com a escrita deste livro, valter hugo mãe escreve então sobre uma máquina de fazer espanhóis, a máquina que tritura por vezes tudo o que um “bom homem” tem ainda para dar ao seu país esquecendo por vezes o que devia ter dado quando teve oportunidade.
“a máquina de fazer espanhóis” é no entanto um livro optimista ao tornar possível no nosso pensamento a ideia de que podemos através de uma catarse expulsar alguns dos males com que vivemos, mas que fazem parte da nossa herança social e cultural do século passado.
E está lá tudo: as memórias de supostos “fantasmas”, da ditadura, do fanatismo do futebol, da igreja, do pessimismo com que os portugueses parecem não conseguir sobreviver. E estão lá os fantasmas dessas memórias, sem lençol na cabeça, bem espremidos, como que servidos num prato em que cada um só come o que quer. Mas desengane-se quem pensa que esta é uma refeição servida à mesa de um restaurante de fastfood: “a máquina de fazer espanhóis” é comida para o espírito, portuguesa e caseira. E da melhor que se serve nos dias que correm.
a máquina de fazer espanhóis
valter hugo mãe
Objectiva-Alfaguara
2010
Nota: publicado originalmente em http://orgialiteraria.com/
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