30 de dezembro de 2010

Jorge Luis Borges, Ficções

“Ficções”, obra considerada como uma das grandes impulsionadoras da literatura sul-americana do século XX, publicado originalmente em 1944 (reimpresso pela Teorema em 2009), reúne uma série de contos que têm como temas predominantes, aqueles que ao longo da sua carreira marcaram Jorge Luis Borges como escritor: a memória, a émula do tempo, os labirintos físicos e mentais, os labirintos do pensamento, os espelhos e simetrias; a análise de livros eles próprios ficcionados ou como explica o autor no prólogo a “escrita de notas sobre livros imaginários”; a tautologia da própria literatura e a arte da dialéctica, mas consigo próprio, com a sua consciência e com um mundo muito próprio que se foi aprofundando com a cegueira do escritor argentino; um dos contos mais conhecidos, “A biblioteca de Babel”, narra a criação de uma biblioteca feita por um qualquer demiurgo onde existiria a totalidade de todos os livros potencialmente já escritos ou por escrever; e noutros contos aborda-se o estudo psicológico das personagens, especialmente na segunda parte do livro, em que Borges analisa nos diversos textos a dicotomia entre a coragem e a cobardia de se ter de tomar uma decisão, de seguir inevitavelmente um dos caminhos no “jardim dos caminhos que se bifurcam” explanado no conto que finaliza a primeira parte. 
O livro divide-se em duas parte. Da primeira, "O jardim dos caminhos que se bifurcam" fazem parte os contos "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius", "Pierre Menard, autor de Quixote", "As ruínas circulares", "A lotaria em Babilónia", "Análise da obra de Herbert Quain", "A biblioteca de Babel" e "O jardim dos caminhos que se bifurcam". A segunda parte, "Artifícios" é constituída pelos contos "Funes ou a memória", "A forma da espada", "Tema do traidor e do herói", "A morte e a bússola", "O milagre secreto", "Três versões de Judas", "O fim", "A seita da Fénix" e "Sul".

excerto:
“argumentei (...) que a minha cobarde felicidade provava que eu era homem capaz de levar a aventura a bom termo. Desta fraqueza tirei forças que não me abandonaram. Prevejo que o homem se há-de resignar dia a dia a empresas cada vez mais atrozes; em breve não haverá senão guerreiros e bandidos; dou-lhes este conselho: O executor de uma empresa atroz tem de imaginar que já a cumpriu, tem de se impor um futuro que seja irrevogável como o passado. Assim procedi eu, enquanto os meus olhos de homem já morto registavam o fluir daquele dia que era talvez o último, e a noite a espalhar-se.” p. 83

28 de dezembro de 2010

Gonçalo M. Tavares, Matteo perdeu o emprego

“Matteo perdeu o emprego” (Porto Editora, 2010) é sobre um homem: Matteo, mas também sobre todas as outras personagens que nos conduzem a Matteo, de forma alfabética e com pequenas referências visuais (como é referido numa nota inicial “os nomes das personagens têm origem num trabalho de Daniel Blaufuks”). O livro pode ser lido como o conjunto de pequenas narrativas, que correspondem a capítulos, e que se podem constituir como textos individuais, mas cujo objectivo é levar-nos até ao texto final de Matteo. Os “ganchos” no final de cada capítulo, que normalmente são escondidos de forma laboriosa pelo autor de um livro, são aqui acentuados por Gonçalo M. Tavares de forma propositada. O autor quer que nos dirijamos para um determinado sentido ou direcção, mas vai deixando pequenas pistas para que o leitor se interrogue do porquê de irmos numa direcção e não noutra qualquer. Ao contrário da rotunda, um dos símbolos deste livro, o autor coloca-nos num cruzamento, em que podemos virar à direita, à esquerda ou seguir em frente, mas com a condição de não voltarmos para trás.
Tão importante como a narrativa global em si, é o próprio posfácio, em que o autor reflecte sobre o que escreveu. Aqui se nota o seu raciocínio célere (que poderá explicar parte da sua prolificidade) mas ponderado, quase como que pesado e acertado à grama numa balança digital. A capacidade de racionalizar os temas que definem uma sociedade, especialmente as do século XX, associada a uma capacidade de interligar essa racionalidade com o nosso quotidiano de uma forma pouco comum, mas clara e transparente, é o que torna talvez Gonçalo M. Tavares único na literatura contemporânea portuguesa.

Excerto
“Cohen era alguém que dominava por completo a cabeça ou, pelo menos, a parte da cabeça que se liga aos actos voluntários. Não era louco. Pelo contrário, Cohen ensinava na Faculdade de Letras. Era um respeitado professor; também gozado, claro, mas respeitado intelectualmente pelos seus escritos, pelos seus estudos – a escrita, era de facto, a única maneira de ele estar presente sem o seu corpo o deixar embaraçado, o seu corpo indócil e incontrolável. Aliás, em Cohen a dedicação crescente à escrita era consequência dessa inabilidade estrutural do corpo. Quando escrevia não tinha tiques ou, pelo menos, se os tivesse era um daqueles lá em cima, nas sobrancelhas – o de as levantar várias vezes. Mas sem espectadores, sem testemunhas, esse tique era nada – e nada o envergonhava.” p.36

21 de dezembro de 2010

# untitled - love #

adormece a leve sombra do teu abraço,
impressa na parede junto à margem.


seguro-te a cabeça num refúgio de sono
e penduro o teu beijo, logo acima do queixo.
no chão, quebradiças folhas de outono:
um amarelo acobreado no silêncio da calçada.


peço-te baixinho:
não digas nada,
que as águas do rio
soletrarão o nosso destino
n-a d-i-r-e-c-ç-ã-o d-o m-a-r.

20 de dezembro de 2010

Não é um passe de Antologia, é uma revista

Emanuel Amorim, Gonçalo Mira e Nuno Fonseca criaram a ANTOLOGIA, uma revista de contos.
Segundo informação dos editores "a Antologia é uma revista semestral de contos que nasce da vontade de criar um espaço digno para este género. Tem como objectivo a publicação de inéditos de autores portugueses contemporâneos, não deixando de publicar, sempre que oportuno, autores clássicos ou estrangeiros. Não se restringe a um registo: tanto poderá encontrar nas suas páginas um conto realista como um de ficção científica. É generalista, sem, no entanto, perder de vista a qualidade, o seu único critério."
No site www.revistaantologia.com podem consultar mais detalhes sobre o projecto.

Mohs e a sua escala

o poema mais científico que conheço, para avaliar do seu grau de dureza.

talco
gesso
calcite
fluorite
apatite
ortóclase
quartzo
topázio
corindo
diamante

sendo o sistema de saúde tendencialmente gratuito, esta escala é tendencialmente dura.

19 de dezembro de 2010

Nuno Moura: "A fluência de Magda - the new cochicho"

         destinatário alexandre o'neal:


um suicida deixou escrito
ando-me a vingar.


um mal despedido pediu
em tribunal só
que o deixassem ir buscar
as suas últimas coisas
o livro à descoberta de portugal
edição digest
e uma amostra de perfume carminho.


uma amante atrasou-se uma vez
e ele furioso casou com ela.


uma amante atrasou-se uma vez
e ele furioso foi logo divorciar-se.


favores de sangue borrado
dão enlatada na goela.


perante a lei romana do mercado
a igreja prepara agora os primeiros poetas digitais.


um pintor suicida deixou escrito numa pedra
se eu tivesse uma tela tamanho gêtrês
iam perceber.


um amigo dizia ao outro
caso com ela
mas é metade para cada um.


um senhor de idade diz
aceite um último gesto deste cavalheiro
e a senhora de idade responde
abafe-me então.


um comité analisa se as razões pelas quais
nos separamos
são as mesmas pelas quais nos juntamos.


deram mais um poeta
como incapacitado para sentir.


as montanhas azuis da austrália desbotaram
revelando em tamanho autedóre
os princípios originais do senhor não deverás.


não atropelarás não integrarás não passarás
não repugnarás
não te sairá pela culatra
não desmanches que é para mais tarde recordar
não procures água na lua
vai-te casar e está quieto
quem é teu amigo quem é


este trabalho estava inexplicavelmente assinado num canto
por comissão de festas do olimpo
(também se conseguiu saber que o grupo de cantares de
cabaréte
actua às sextas por cima do reino das dinamarquesas
toma nota)


a selecção nacional de poetas seniores continua a empatar
e a de esperanças a não apresentar soluções no ataque.


não é que parta isto tudo
mas reguila.


ps:
oeiras vai ter uma alameda dos poetas
no ano dois mil.
isso ri-te.

in Os livros de Hélice Fronteira, "gosto das mesmas palavras que tu" Mariposa Azual

16 de dezembro de 2010

encruzilhada

o fogo que nos dilacera por dentro.
a angústia, o fim, a calma que afaga os sentidos:
despojos lúcidos perdidos.
o âmago insolúvel e por vezes insondável do nada
que nos permite sermos nós próprios
a desistirmos daquilo em que acreditamos.


liberdade: olhos abertos sem algemas
e as mãos unidas, num punho fechado e ausente:
dedos encruzilhados entre a angústia e o fim.

Carlos Pinto Coelho (1944-2010)

8 de dezembro de 2010

Cormac McCarthy: "Este país não é para velhos"

Um  homem, Llewelyn Moss, no meio do deserto inicialmente à caça de antílopes, apodera-se de uma mala cheia de dinheiro e leva-a para casa. Atrás de si ficou um rasto de destruição, resultado de um negócio de droga que correu mal na fronteira do México com os Estados Unidos. Levar a mala consigo pode ter sido o maior erro da sua vida. Isso ou voltar lá no dia seguinte num acto de misericórdia. A partir desse momento tudo será diferente na sua vida: será perseguido por Anton Chigurh, um sociopata que parece não poder ser destruído por nada, mas que destrói tudo à sua volta; por Carson Wells, outro atirador contratado para recuperar o dinheiro; e ainda, mas num sentido diferente, pelo xerife Ed Tom Bell, um homem em constante contradição entre o que faz ou quer fazer e o que pensa, que parece não se ter conseguido adaptar aos novos tempos. O xerife ao resolver o crime de droga, tenta arranjar uma solução para Moss e para a sua mulher que também teve de fugir por medo de represálias. 
Cormac McCarthy, com este romance escrito em 2005, e que passou a filme pelos irmãos Coen (quatro óscares em 2008: filme, realizador, argumento adaptado e actor secundário, neste caso para Javier Bardem) traça-nos, muito ao seu estilo, uma América dos anos oitenta crua, violenta, com muitos vícios e loucura onde o fim justifica os meios.

Jeff Buckley: lover, you should've come over

Lonely is the room the bed is made

The open window lets the rain in
Burning in the corner is the only one

Who dreams he had you with him
My body turns and yearns for a sleep
That won't ever come
It's never over,
My kingdom for a kiss upon her shoulder
It's never over,
all my riches for her smiles when I slept so soft against her...
It's never over,
All my blood for the sweetness of her laughter...
It's never over,
She's a tear that hangs inside my soul forever...
But maybe I'm just too young to keep good love
From going wrong
Oh... lover you should've come over...

7 de dezembro de 2010

David Mourão-Ferreira: excerto de Gaivotas em Terra

Início da novela Casal Venha Lisboa. Fez-me lembrar "os anões" de Harold Pinter. Mais um para reler.

"- E Roma? Que tal?
Em Roma tinha estado apenas uma horas.
E vinha com os nervos arrasados: que pesadelo a noite em Nairobi!
- Em Nairobi? - perguntou ele.
- Sim... No Quénia. A capital do Quénia. A terra dos Mau-Mau.
- Ah!
- Que horror! Que horror!
Dalila declamava. E, por baixo das palavras, arranhava-se o mito: Dalila parecia declamar o papel de Clitmnestra. Era isso: Clitmnestra.
- Chega?
- Chega.
Interrompera a narrativa para lançar nos copos mais dois dedos de uísque.
- Gelo?
Sertório fez que sim com a cabeça.
- Água?
- Um pouco. E tu?
- Não! Agora, não. Puro! Puro!"

5 de dezembro de 2010

Conto: os olhos do meu pai

A minha mãe levantou-se e olhou na direcção da figura franzina: um enrugado de sentimentos misturados entre alegria e alívio. os flancos da alcofa cobertos pela brancura de um lenço a cheirar a desinfectante. os sentimentos enrugados conjugavam-se na forma de pequenos braços e pequenas pernas; esticavam-se numa tentativa frustrada de expulsar a preguiça. olhei à volta aproveitando os poucos momentos em que me era permitida a existência no quarto. o meu pai ordenou que me sentasse. disse-me para não incomodar, como se a minha respiração pudesse acordar todos os doentes em coma do hospital.
No hospital não se faz barulho, nem se brinca.
encolhi-me: vagueei ligeira pelo quarto procurando onde me sentar. finalmente uma cadeira branca tapada por uma cortina e perdida num canto do quarto. sentei-me e mirei os sapatos que não chegavam ao chão. os sapatos pretos e luzidios. não os largava, eram a minha prenda por ter feito a segunda comunhão.
Nos dias de hoje oferecem-se prendas até para que os meninos rezem, rezou a minha madrinha, no dia em que os experimentei no chão frio da igreja. os sapatos brilhavam quando o sol lhes batia. olhei de novo para cima colocando-me em escala: o meu pai uma árvore abanada pelo vento; a minha mãe estava mais calma. sorria para mim. devolvi-lhe o sorriso. no sorriso da minha mãe via o mar. por isso olhava muitas vezes para ela. porque gostavámos da praia. o meu pai não. não sei o que via nos olhos do meu pai, mas não era o mar. a enfermeira que nos fazia companhia saiu do quarto depois de acomodar novamente a minha mãe na cama. o meu pai continuava nervoso. fez festas na testa da minha irmã. ainda não tinham decidido o nome. ou não o tinham dito em voz alta. pegou em mim ao colo e inclinou-me sobre a alcofa.
A tua irmã é muito bonita. Tu também, mas a tua irmã é diferente. ouviu-se um barulho atrás de nós: o avô espreitava da porta e os meus pés pisavam de novo o chão do quarto para receber um beijo na testa. depois desse breve momento a alcofa uma ilha rodeada de beijos e abraços do avô, do pai e de quem aparecesse. o meu corpo um pequeno barco à deriva. sem bússola e sem norte.
não sei o que via nos olhos do meu pai mas não era o mar. o meu pai...a partir daquele dia, simplesmente deixou de ver os meus olhos.

2 de dezembro de 2010

Concursos de contos: Alfarroba e FNAC/Teorema

Para os que gostam de escrever contos, dois concursos:

Um pela Editora Alfarroba. Lançado em Setembro e com Inscrições até 15 de Dezembro. Mais info aqui.

E o da FNAC Teorema. Inscrições até 31 de Janeiro. Regulamento disponível aqui.

Bom meio de promoção para este género literário pouco "amado" e divulgado em Portugal.

30 de novembro de 2010

António Lobo Antunes: "Sôbolos rios que vão"

O novo romance de António Lobo Antunes dilui-se de forma positivamente feliz num rio de memórias, de fios finitos atados por personagens presas num puzzle intrincado de emoções e acontecimentos dispersos; saudades escondidas entre a nascente do rio Mondego de onde brotam fragmentos sólidos da infância: os hotéis e os campos de ténis, os pais, o avô a ler o jornal, a harpa e as minas de volfrâmio escavando momentos, os comboios como retornos rítmicos ao passado seguindo um trilho tenuamente definido e com muitas curvas. A.L.A. expõe-se e expõe a fragilidade de um Antoninho ou senhor Antunes que consciencializa de forma gradual que o fim de quinze dias de internamento pode não querer significar o regresso ao quotidiano; expõe a falta de dignidade do que é ser paciente num espaço que por demasiado público se torna incómodo, o hospital, onde não se tem o controlo, onde não se pode esconder aquilo que não se quer mostrar. A.L.A. prova mais uma vez que é um mestre do disfarce e da poesia em prosa. Porque mais do que um romance, "Sôbolos rios que vão" é um longo poema.

29 de novembro de 2010

Prémios, Prestígio e os Livros: o que vem primeiro?

Deverá ser um Prémio Literário a dar prestígio ao Livro/Autor ou o Livro/Autor a dar prestígio ao Prémio? Bem, o júri do Prémio LeYa em 2010 acha que o Prémio tem mais prestígio do que os livros a concurso. Segundo o comunicado distribuído à imprensa, não foi atribuído prémio (ler dinheiro) por "as obras a concurso não corresponderem à importância e ao prestígio daquele no âmbito das literaturas de língua portuguesa." Considerou ainda que "os originais (...) apesar de (terem) algumas potencialidades, se apresentam prejudicados por limitações na composição narrativa e por fragilidades estilísticas". Critérios sempre subjectivos mas por isso mesmo passíveis de serem usados como argumento. Será que o Prémio Leya não colocou a fasquia alta de mais para o que se pretende? Divulgar novos autores/obras (Artigo 1 do regulamento: O Prémio LeYa tem por objectivo incentivar a produção de obras originais de escritores de língua portuguesa, e destina-se a galardoar uma obra inédita de ficção literária, na área do romance, que não tenha sido premiada em nenhum outro concurso.) Porque, como é óbvio, um autor que já tenha créditos na praça à partida não se vai sujeitar ao crivo de outros "colegas" havendo o risco de não ganhar, mesmo que seja sob pseudónimo. Ou então o júri do Prémio acha que há assim tantos génios literários escondidos do grande público no nosso país e também lá fora, que à primeira tentativa façam uma obra prima passível de se encaixar nos critérios desse mesmo Júri. Mas não tapemos o sol com a peneira. Os critérios traduzidos de forma simples querem dizer isto: a obra vencedora tem de ter qualidade suficiente (para além do impulso inicial dado pelo Prémio) para vender milhares de exemplares pelo mundo fora e dar ao grupo empresarial que o patrocina o devido retorno financeiro previsto. Portanto em relação à questão inicial do que vem primeiro, a resposta é simples: o dinheiro (ler prestígio).

Por curiosidade e por falarmos de Prémios Literários aqui ficam alguns dos que foram atribuídos nos últimos meses. A maior parte não inéditos. Porque será? (Fonte: Booktailors)

Popular Fiction Book of the Year (dos prémios Galaxy National Book), David Nicholls, Um Dia


UK Author of the Year ( dos prémios Galaxy National Book Awards), Hilary Mantel


Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís, Paulo Mourão Bugalho, A Cabeça de Séneca


Prémio Cervantes, Ana María Matute


Prémio de Melhor Livro Estrangeiro 2010 em França, Gonçalo M. Tavares, Aprender a Rezar na Era da Técnica


Prémio Literário Maria Rosa Colaço, na categoria de literatura infantil Palmira Baptista O Relógio, e literatura juvenil, Cassilda Saldanha com O Galo que nunca mais Cantou e Outras Fábulas


Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes, Armando da Silva Carvalho, Anthero Areia & Água


National Book Award na área de não ficção, Patti Smith, Just Kids


Prémio Portugal Telecom de Literatura, Chico Buarque, Leite Derramado


Prémio Goncourt , Michel Houellebecq, La Carte et le territoire


Prémio Femina, Patrick Lapeyre, La vie est brève et le désir sans fin


Prémio Pen 2009 na categoria de narrativa, Dulce Maria Cardoso com O Chão dos Pardais e Luísa Costa Gomes com Ilusão (ou o que quiserem)


Prémio de melhor álbum português (Festival Internacional de BD da Amadora), Rui Lacas, Asteroid Fighters


Prémio Anna Politkovskaya da RAW in War (Reach all Women in WAR), Halima Bashir, Lágrimas do Darfur


Prémio literário Thomas Mann, Christa Wolf


Prémio Literário Cidade de Almada de 2010, Eugénia Brito, Zapping sobre as madrugadas idênticas.


Prémio Eduardo Lourenço, César Antonio Molina


Prémio Hans Christian Andersen, JK Rowling


Prémio Planeta 2010, Eduardo Mendoza sob o pseudónimo de Ricardo Medina, Riña de gatos


Prémio Not the Booker Prize 2010, Lee Rourke, The Canal e Matthew Hooton, Deloume Road


Prémio Man Booker 2010, Howard Jacobson, The Finkler Question


Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica 2010, Fernando Cabrita, Ode à Liberdade e outros poemas


Prémio Nobel da Literatura de 2010, Mario Vargas Llosa


Prémio D. Dinis 2009, Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, História de Portugal


Prémio Jabuti na categoria de romance, Edney Silvestre, Se Eu Fechar os Olhos Agora e na categoria juvenil, Ondjaki, AvóDezanove e o Segredo do Soviético


Prémio Bissaya Barreto, Manuel António Pina e Inês do Carmo, O Cavalinho de Pau do Menino Jesus e outros contos de Natal


Prémio PEN/Saul Bellow 2010, Don DeLillo


Prémio Literário Fernando Namora/Estoril Sol, Luísa Costa Gomes, Ilusão (ou o que quiserem)


Prémio Máxima Vida Literária, Maria Teresa Horta, Poesia Reunida


Prémio Camões 2010, Ferreira Gullar


Concurso Literário Artefacto – Poesia, Luís Felício, o som a casa.


Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLB 2009, Rui Cardoso Martins, Deixem Passar o Homem Invisível.

28 de novembro de 2010

Conto: intervalo

Considero-me uma pessoa simples. nunca saí da minha cidade, mas sinto-me como se nunca a tivesse vivido. paradoxalmente, já viajei por todo o mundo, mas sem sair do sofá. naquele dia até estrelas vi. mas isso já passou. ou não passou, mas não quero falar nisso. do que eu gosto mesmo é de filmes. no sofá sou vítima desses filmes. nessas alturas as noites são mágicas. esforço-me até por não pensar em nada. limito-me a manter os olhos e os ouvidos abertos para absorver aquilo que me interessa. não penso em nada. não penso em ninguém. não penso em mim sequer. o que para um egocêntrico convicto é difícil de confessar. limito-me a vegetar, com os olhos colados num quadrado pequeno chamado televisor e em que homens ainda mais pequenos se movem. quando a luz vinda de fora me incomoda fecho as cortinas. sento-me. e então tudo pára. separo-me do mundo. mas os homens no quadrado pequeno também páram. permanecem estáticos durante os segundos seguintes. levanto a perna direita e a pausa extingue-se. os pequenos homens recebem autorização para se moverem de novo. com um gesto irritado atiro o comando do televisor contra a parede e rio-me sozinho. os homens no quadrado pequeno voltam a parar. é a sua memória que falha. a memória que nasce como instrumento da consciência mas que cai facilmente na armadilha do tempo. perdido o meu olhar na cortina, as duas personagens enfrentam-se dentro de uma sala. apanhando-me distraído, um dos homens dispara dois tiros na zona do coração do outro homem. silêncio. as balas ficaram a zumbir-me nos ouvidos. o televisor estava muito alto. mudo do video para a televisão e as personagens dão lugar a um intervalo publicitário. não tenho paciência para intervalos. nessas alturas deixo de escutar o mundo porque deixa de fazer sentido. e abro de novo as cortinas para perceber onde estou. o resto deixa de me interessar. como não me interessa a família. nem a religião. nem o futebol. olho para baixo. um copo de uísque numa mão e um copo de vodka na outra. mais tarde decido qual dos dois irei beber primeiro. sinto-me a melhor pessoa do mundo. e a mais inútil. os meus olhos fecham-se durante algum tempo. acordo com um barulho vindo da entrada da casa. a porta da sala abre-se. entra um homem. puxo da pistola escondida entre duas almofadas do sofá. disparo dois tiros na zona do coração do outro homem. ele cai no chão. inerte. com os olhos abertos virados para a janela. ligo o televisor. os anúncios não são assim tão aborrecidos ao final da tarde.

texto alterado a partir do conto com o mesmo nome publicado na Revista Ficcões Brasil em Junho.

23 de novembro de 2010

"Sombras" no TNSJ - uma criação de Ricardo Pais

Luzes, "Sombras", Acção


Com "Sombras" (em exibição no TNSJ até 28 de Novembro) estamos perante um espectáculo completo. Uma criação de Ricardo Pais, produzida segundo o próprio em tempo recorde, em que se cruzam variadas referências, a começar pelas "antigas" e "novas" literaturas, de Almeida Garrett a Fernando Pessoa, de António Ferreira a Alexandre O'Neill, de Pedro Homem de Mello a Jacinto Lucas Pires e em que se canta o fado e se dança o fandango mesclados a diferentes níveis de interpretação como símbolos de tradições e contradições.
Uma sessão transdisciplinar com uma forte componente cénica e de multimédia (com vídeos de Fabio Iaquone e Luca Attilii) em que somos absorvidos pelo palco como se as imagens projectadas nele se diluíssem a três dimensões.
Excelente "nota" para a música original de Mário Laginha bem acompanhado pelos músicos Carlos Piçarra Alves no clarinete, Mário Franco no contrabaixo e Miguel Amaral em guitarra portuguesa e Paulo Faria de Carvalho (ou Diogo Clemente) em viola, assim como para os actores (Emília Silvestre, Pedro Almendra e Pedro Frias), os fadistas (José Manuel Barreto e Raquel Tavares) e os bailarinos (Carla Ribeiro, Francisco Rousseau e Mário Franco) que ao responderem de forma positiva à complexidade do desafio que lhes foi proposto, conseguiram nele deixar - cada um à sua maneira - uma marca própria. Com o subtítulo de "a nossa tristeza é uma imensa alegria" o que alguns apelidam de portugalidade tanto pode rimar aqui com fatalidade, como saudade ou felicidade.
Ricardo Pais refere no Programa que «"Sombras" é um espectáculo escrito. Pouco interessa em que parte do corpo. É dramatúrgico. (...) "Sombras" é, afinal, um espectáculo em várias línguas.» E é isso que fica na memória.

Ficha técnica completa
uma criação de Ricardo Pais vídeo Fabio Iaquone, Luca Attilii música original e direcção musical Mário Laginha coreografia Paulo Ribeiro cenografia Nuno Lacerda Lopes figurinos Bernardo Monteiro desenho de luz Rui Simão desenho de som Francisco Leal voz e elocução João Henriques consultor musical (fados) Diogo Clemente encenação Ricardo Pais assistência de encenação Manuel Tur interpretação José Manuel Barreto, Raquel Tavares (fadistas); Emília Silvestre, Pedro Almendra, Pedro Frias (actores); Carla Ribeiro, Francisco Rousseau, Mário Franco (bailarinos); Mário Laginha (piano), Carlos Piçarra Alves (clarinete), Mário Franco (contrabaixo), Miguel Amaral (guitarra portuguesa), Paulo Faria de Carvalho ou Diogo Clemente (viola); Albano Jerónimo, António Durães, João Reis, Teresa Madruga, entre outros (colaboração especial em vídeo) produção TNSJ co-produção Centro Cultural Vila Flor, Teatro Viriato, São Luiz Teatro Municipal classificação etária M/12 anos



19 de novembro de 2010

António Lobo Antunes: "apesar de eu vazio ou seja não vazio"

"(...) conheço desconsolos nas coisas, não conheço nas pessoas e portanto não me queixo, o que é o desconsolo aliás, não tenho ocasião para me entristecer ou não há o espaço no meu peito que a tristeza requer apesar de eu vazio ou seja não vazio porque uma vela num castiçal antigo que a prima que tomava conta de mim plantava à cabeceira,(...)"

in "Sôbolos rios que vão", D. Quixote, p.29

17 de novembro de 2010

Alegre e Cavaco: A diferença de o ponto ser final.

Não.

Não estou.

Não estou muito.

Não estou muito Alegre.

Não estou muito Alegre com.

Não estou muito Alegre com este.

Não estou muito Alegre com este Cavaco.

16 de novembro de 2010

valter hugo mãe: "a máquina de fazer espanhóis"

Depois de “o nosso reino”, “o remorso de baltazar serapião” e “o apocalipse dos trabalhadores”, valter hugo mãe continua com “a máquina de fazer espanhóis” - no que aos romances diz respeito - a sua jornada literária na evocação de vidas comuns, que são as que no fundo mais sentimos e mais nos dizem respeito.

Neste livro, e apesar do título, valter hugo mãe escreve sobre Portugal e acima de tudo sobre o que é ser português, ou de como por vezes Portugal parece ser uma máquina adormecida no tempo e que acordando de um marasmo sonolento só sabe fazer espanhóis.

Tendo como personagem principal o Sr. Silva, nome não escolhido ao acaso e comum a muitas outras personagens do livro, o autor faz-nos vivenciar a sua história - que é talvez a da maior parte de nós no futuro - e a história dos seus fantasmas, e as histórias e os fantasmas dos novos companheiros do Sr. Silva no lar Feliz Idade para onde é levado pela filha.

A partir da entrada no lar são ternas histórias as que se vão sucedendo e que se vão lentamente aproximando do fim, vidas que vão trocando de quartos, numa magnífica metáfora da própria vida, como se os “inquilinos” do Feliz Idade, aos oitentas anos, regressassem ao banco de suplentes depois do aquecimento não havendo no entanto nada a seguir: nem jogo (?a vida?), nem jogadores (?os que vão primeiro?), nem sequer o árbitro (?Deus?). Apenas o Cubillas na parede do quarto da D. Leopoldina.

valter hugo mãe fala-nos também – porque é de falar que se trata por vezes – dessa coisa estranha que é ser velho nos dias de hoje. Do que é perder muitas vezes a dignidade e ser encostado na borda do prato depois da sociedade os ter chupado até ao tutano do osso. Como diz o Sr. Silva, “pegaram em mim e puseram-me no lar com dois sacos de roupa e um álbum de fotografias. foi o que fizeram. depois, nessa mesma tarde, levaram o álbum porque achavam que ia servir apenas para que eu cultivasse a dor (...). depois, ainda nessa mesma tarde trouxeram uma imagem da nossa senhora de fátima e disseram que, com o tempo, eu haveria de ganhar um credo religioso, aprenderia a rezar e salvaria assim a minha alma”.

E se é verdade que as pessoas sendo diferentes reagem normalmente de maneira diferente, é também verdade que o medo da morte pode levar a sentimentos semelhantes, e é assim que podemos assistir às traquinices de dois velhos de oitenta anos de mãos dadas a espreitarem de madrugada os quartos uns dos outros, como se regressassem a uma infância saudosa. Um dos pontos altos do romance é o delicioso diálogo entre o Sr. Silva e o Sr. Pereira que retrata esta cena.

Atingindo uma maturidade autoral significativa com a escrita deste livro, valter hugo mãe escreve então sobre uma máquina de fazer espanhóis, a máquina que tritura por vezes tudo o que um “bom homem” tem ainda para dar ao seu país esquecendo por vezes o que devia ter dado quando teve oportunidade.

“a máquina de fazer espanhóis” é no entanto um livro optimista ao tornar possível no nosso pensamento a ideia de que podemos através de uma catarse expulsar alguns dos males com que vivemos, mas que fazem parte da nossa herança social e cultural do século passado.

E está lá tudo: as memórias de supostos “fantasmas”, da ditadura, do fanatismo do futebol, da igreja, do pessimismo com que os portugueses parecem não conseguir sobreviver. E estão lá os fantasmas dessas memórias, sem lençol na cabeça, bem espremidos, como que servidos num prato em que cada um só come o que quer. Mas desengane-se quem pensa que esta é uma refeição servida à mesa de um restaurante de fastfood: “a máquina de fazer espanhóis” é comida para o espírito, portuguesa e caseira. E da melhor que se serve nos dias que correm.

a máquina de fazer espanhóis


valter hugo mãe
Objectiva-Alfaguara
2010

Nota: publicado originalmente em http://orgialiteraria.com/

15 de novembro de 2010

John Irving: A realidade e Ronald Reagan

John Irving entrevistado na Ler por Filipa Melo.

"A realidade é um acidente. Dou sempre um exemplo que adoro porque põe os americanos furiosos. Sou muito cuidadoso na forma como construo os meus romances com plausabilidade e lógica, como uma casa que não pode ir abaixo. Quando um parvo qualquer me diz que é muito pouco crível que alguém confundisse uma mulher com um urso, eu respondo: «Ok, então vamos pensar em mais coisas inverosímeis...» Imaginem que escrevo um romance sobre um locutor desportivo do Midwest, não muito bom no que faz, de quem não gosta muito, mas que lá vai conseguindo uns trabalhinhos na rádio e na TV. Depois, ele vai para Hollywood à procura de emprego e torna-se actor: um mau actor, descuidado, sempre de série «B» e que ninguém leva a sério como actor. Fica famoso e, porque ao contrário dos outros actores tem muito tempo livre, torna-se presidente do sindicato dos actores de cinema. Ele é um péssimo presidente, mas isso parece não incomodar ninguém, e depois ele torna-se um péssimo governador do estado da Califórnia e, logo a seguir, um horrível Presidente dos EUA, mas um muito popular horrível Presidente dos EUA por dois mandatos. Se eu escrevesse este romance, as pessoas diriam que era inverosímil. De facto, a vida real pode ser tão estúpida que exclui qualquer sustentação. É um erro estúpido que um homem tão incapaz como Ronald Reagan alguma vez tenha chegado a ser o que quer que seja, incluindo um mau actor. Eu tenho de trabalhar bem mais e melhor do que isso para contar uma boa história." 

14 de novembro de 2010

Festival da FáBRICA: Dança Contemporânea no Porto

O Festival da FáBRICA, dedicado desde a sua génese (esta é a 12ª edição) à dança contemporânea, foi criado e é dinamizado todos os anos pela Associação Cultural Fábrica de Movimentos. De 11 a 20 de Novembro, e divididos por vários espaços da cidade do Porto, podem ser apreciadas diversas actuações, em dose única, dupla ou tripla, como no caso do dia 19 de Novembro no Hard Club onde actuarão Koldo Arostegui, Silvia Gribaudi e Gustavo Figueiredo e Lander Patrick, estes dois últimos no espectáculo Hurra!Arre! de Luís Guerra de Laocoi.
Paralelamente a este Festival é organizado o Frame Research, de 22 a 27 de Novembro, onde a dança se cruza com o video e as artes digitais.
Para mais informações podem aceder ao site da Fábrica de Movimentos.

Laboratório de Leitura Poética: "Há palavras que nos Beijam"

12 de novembro de 2010

José Luís Peixoto: Livro

"Livro", de José Luís Peixoto, publicado pela Quetzal, é um retrato sobre a emigração, a vida na aldeia, as gentes do interior; sobre os Ilídios, Cosmes, Adelaides e Lubélias que viviam com a incógnita do futuro e com a ausência de alguém como condição de vida; sobre as fontes no meio da aldeia e as cartas escritas entre a saudade e a paixão, ou as mães que não apareciam no escuro da noite para um aperto ou abraço de segurança; sobre as terras lusas, espanholas e francesas, cruzadas por caminhos agrestes, com figuras metaforicamente grotescas ilustrando o desconhecido que se infiltrava no corpo com a partida e que não se diluía na chegada.
"Livro" é sobre um viver que se constitui como parte visceral do que seguramos nas mãos, como se nos lêssemos a nós próprios, sendo envolvidos pela realidade ficcional do autor, ao mesmo tempo que este nos faculta a interpretação ou ponto de vista da sua relação com a escrita, as suas leituras e os seus autores.
"Livro" representa as gerações que envelheceram aos poucos, cá e lá, e que pouco dizem às novas gerações que não sabem envelhecer e o que isso custa; gerações que têm tudo à mão de semear quando antigamente semear era apenas e só tudo o que muitos sabiam ou podiam fazer para terem um bocado de comida quando o sol se punha.

José Luís Peixoto - de uma forma pausada mas real e intensa, características base do seu traço como escritor - revela um país que ao longo dos anos desaprendeu a lavrar os campos, mas que a seu tempo perceberá que tem de aprender a lavrar profundamente o conhecimento, sem esquecer a memória do que fomos, para poder apanhar mais tarde o fruto desse trabalho, dando às gerações futuras a sabedoria que estas não estão a saber agarrar no presente. Podem começar por ler o "Livro".

11 de novembro de 2010

Jim Morrison: Miami revisitada

Comentários breves sobre a notícia do perdão a Jim Morrison no Público.

Público: "O governador Charlie Crist - que está prestes a abandonar as suas funções - indicou que está a considerar o perdão a Morrison, que foi condenado a meio ano de prisão em 1969 por ter gritado obscenidades e ter mostrado os genitais ao público que pagou bilhete para o ouvir." James Blackhill: A quem não pagou bilhete Jim Morrison recusou-se a mostrar os genitais.

“Fiquem atentos”, disse Charlie Crist esta semana ao jornal “The Hill”. “É algo que eu estou disposto a tratar durante o tempo que ainda me resta em funções”. Sim Charlie. Ficamos todos à espera.

O caso remonta a 1 de Março de 1969. O concerto dos Doors no auditório Dinner Key, em Miami, transformou-se num evento mítico que entrou para os anais da história do rock na América. " Referir anais, genitais e 69 na mesma notícia não me parece de bom tom para um jornal como o Público.

Morrison chegou ao local do concerto - que estava a abarrotar - depois de um dia de bebidas e depois de ter visto, na véspera, uma peça provocadora em Los Angeles, recorda o “The Guardian”. Ainda bem que é o Guardian que se recorda. Eu em 1969 também não era muito bom a guardar memórias.

O ambiente era, por isso, explosivo. O vocalista começou a hostilizar o público e a gritar palavrões. Às tantas, perguntou à audiência se queria que ele mostrasse o seu pénis (não exactamente por estas palavras). Pelo que me contaram Jim Morrison terá dito "o meu instrumento" o que levantou dúvidas na audiência e nos próprios músicos.

Não é totalmente claro se acabou por mostrar ou não os seus órgãos genitais porque os momentos seguintes foram confusos, com pessoas a invadir o palco e Morrison à luta com o promotor do espectáculo. Durante o julgamento houve igualmente testemunhas contraditórias e o processo acabou por se transformar num debate acerca da liberdade de expressão. Esta notícia também poderia suscitar um debate acerca deste tão nobre assunto.

Fosse como fosse, Morrison acabou sendo absolvido dos crimes de comportamento lascivo e de embriaguez, mas foi condenado por profanação e por exibicionismo. Foi condenado a uma pena de seis meses de prisão e ao pagamento de uma multa de 500 dólares. O cantor acabou, porém, por pagar a fiança e morrer em Paris, aos 27 anos, enquanto aguardava o resultado do recurso. Já na altura os processos demoravam muito tempo. Os arguidos da Casa Pia devem estar a pensar o mesmo: que vão morrer antes de se saber o resultado do recurso.

O governador Crist já tinha dito, em 2007, que havia “algumas dúvidas acerca da solidez do caso”. Depois de ter perdido, na passada semana - nas eleições intercalares - o seu cargo para o candidato republicano Marco Rubio, o governador tem até Janeiro para emitir um perdão. A que se estava a referir exactamente o governador com solidez do caso?

A reunião final que irá decidir se haverá ou não clemência terá lugar no próximo dia 9 de Dezembro, um dia depois daquele que assinalaria o 68º aniversário de Morrison, caso este estivesse vivo. “Tudo é possível”, prometeu Crist. Jim Morrison já veio dizer que está muito preocupado com este assunto e que espera poder finalmente descansar de vez na paz de Crist.

James Douglas “Jim” Morrison nasceu no estado da Florida a 8 de Dezembro de 1943 e morreu em França, em Julho de 1971. Foi encontrado sem vida na banheira do seu apartamento arrendado em Paris. Como não foram encontrados vestígios de acção criminosa, acabou por não ser realizada nenhuma autópsia, tal como está previsto na lei francesa, o que contribuiu para adensar o mistério em torno das causas da sua morte e reforçou o estatuto de Morrison como lenda da música. Para adensar o estatuto ter-se-ia especulado sobre uma overdose. Isso sim é de homem. Agora o homem tomar banho antes de morrer não me parece muito verossímil.

O artista é ainda hoje considerado como um dos mais carismáticos vocalistas de todos os tempos - em larga medida devido à sua personalidade teatral - e consta no número 47 da lista dos 100 Melhores Cantores de Sempre elaborada pela revista “Rolling Stone”. Nada a acrescentar de relevante. Finally!

Os Cinco na Manifestação

Se Enid Blyton fosse viva escreveria: "Os Cinco na Manifestação".
Uma manifestação de 200m em que cinco estudantes de uma secundária em Beja foram acompanhados por 10 polícias. Ver o resto desta excitante notícia aqui.

9 de novembro de 2010

Haile Gebrselassie: O Imperador Humilde

Para quem acompanha o mundo das corridas como eu, foi com tristeza que li a notícia de que Haile Gebrselassie ia abandonar a competição.
Apelidado de Imperador pelo domínio claro nas pistas e em estrada durante os longos anos de provas, e pelo nome homónimo que partilhava com Haile Selassie (Imperador da Etiópia entre 1930 a 1974), o corredor etíope destacava-se pela sua humildade e sorriso contagiante. Quando o avistei ao longe, antes da meia maratona sportzone no Porto em 2009, vi um homem de pequena estatura, a fazer os seus exercícios de alongamento num clima de descontração, parecendo estar a preparar-se para um pequeno jogging, quando na realidade daí a uma hora já estaria a 21,097 km de distância e com a medalha de vencedor ao peito. Penso que só não se aproximou do recorde mundial da distância nesse dia devido ao forte vento que se fazia sentir na marginal do rio Douro. É ainda hoje o detentor do recorde mundial da Maratona com 2:03:59.
Nota: existe uma biografia em inglês, de Jim Denison: The Greatest: The Haile Gebrselassie Story, neste momento esgotada no site da Amazon inglesa(desconheço se é comercializado em Portugal o original), mas o que gostava mesmo era de ver o livro traduzido para português. Penso que será uma opinião partilhada por milhares de amantes desta modalidade no nosso país. Se fosse um livro de futebol, talvez tivesse mais hipóteses de ser traduzido. Como é de atletismo, temos de esperar (a correr de preferência e não sentados), ler em língua inglesa o original ou traduzi-lo nós próprios.

George Bush: Oito anos de decisões erradas

George Bush desdobra-se em entrevistas para promover o seu livro de memórias Decision Points, dois anos depois de ter deixado os Estados Unidos, com consequências para o resto do mundo, numa autêntica calamidade. Como se as pessoas tivessem memória curta e se tivessem esquecido de tudo o que fez, deveria ter feito ou fez de errado. O livro retrata a sua passagem pela Casa Branca: oito anos em que combateu com Jay Leno e Conan O'brien para ganhar o título de comediante do ano, ou até da década. Só Saddam Hussein não lhe achou muita piada: se era para ser acusado de ter armas de destruição maciça, ao menos tinha-as feito; agora ter a fama e não ter o proveito...
Infelizmente para todas as pessoas com bom senso neste planeta, o livro irá pertencer à categoria de não ficção, quando deveria ser enquadrado na categoria de ficção/comédia. Sinceramente, olhem para a cara dele: Alguém o consegue levar a sério? Não é difícil perceber que para além de idiota foi um fantoche nas mãos do resto do clã Bush.
Temo que alguma editora portuguesa tenha a infeliz ideia de traduzir e publicar este livro, que não deve passar de um atentado à inteligência e racionalidade de quem o ler. Sim, confesso que não li, nem sequer a sinopse, mas oito anos seus à frente do país mais poderoso do mundo bastaram-me.

Bad boys da Literatura: Lobo Antunes e Michel Houellebecq

Dois dos bad boys da Literatura estiveram em foco por estes dias:

1. Lobo Antunes. A 28 de Outubro foi lançado "Sôbolos rios que vão", mais um título para o cardápio mais original de títulos em língua portuguesa. O escritor que parece estar sempre zangado com tudo e todos, que se pudesse acabava as entrevistas antes de estas começarem, que não tem problemas em criticar o que não aprecia, como se comentasse o tempo, em especial certa literatura portuguesa que parece produzida em série numa fábrica escondida (dica: o autor expoente desse género de literatura é pivot de um noticiário e os seus livros envolvem intrigas parecidas com as de Dan Brown. cf na wikipédia José Rodrigues dos Santos).  O livro referido, "Sôbolos rios que vão", é sobre o senhor Antunes e a sua passagem por um hospital para ser operado a um cancro. A par da guerra colonial e de África é talvez este o tema mais auto-biográfico na escrita de Lobo Antunes. A passagem pelo hospital parece ter humanizado o senhor Antunes, tanto o autor como o personagem.

2. Michel Houellebecq. Nesta segunda-feira, foi anunciado como o contemplado com o prémio Goncourt de 2010 com o "La Carte et le Territoire". Um prémio que dá pouco dinheiro mas muitos proveitos indirectos para o autor e editora em venda posteriores do livro. Michel Houellebecq (nascido Michel Thomas, o Houellebecq é só para chatear) é polémico por natureza, numa atitude que começa nos livros e que continua nas declarações à imprensa, que vão desde a clonagem ao aborto, às diversas religiões e até a acusações de plágio envolvendo o livro que acaba de ganhar o prémio.

7 de novembro de 2010

1, 2, 3, macaquinho do (regime) chinês

Hu Jintao, considerado o homem mais poderoso do mundo (tão poderoso que até um cavalo lusitano se assustou e fugiu da parada), de visita a Portugal neste final de semana, e solidário com os noventa por cento de chineses que trabalham trezentos e sessenta e cinco dias por semana, vinte e quatro horas por dia - representa:
o país que tem um crescimento previsto de 9,5 por cento em 2011 contra os míseros 2,3 por cento dos EUA e que em 2027 ultrapassará o PIB deste país;
o país que através da eléctrica chinesa CPI quer ser accionista de referência da EDP;
o país que quer comprar dívida portuguesa, como compra há muito a dívida de muitos outros países, simplesmente porque pode, aproveitando para gastar a reserva da moeda que tem de sobra;
o país cujos habitantes fornecem as grandes multinacionais com mão-de-obra barata e que só aos poucos começam a aprender o que são momentos de não-trabalho;
o país que nega aos seus habitantes o conhecimento sobre o que se passou em 1989 na Praça de Tiananmen;
o país que em tom de ameaça financeira diz que é perigoso a academia sueca atribuir o nobel da Paz a Liu Xiaobo, preso há mais de uma década por não compartilhar da opinião do regime;
o país que vê centenas de chineses a apoiar o seu líder em frente ao Mosteiro do Jerónimos com bandeiras e sorrisos, mas que quando interpelados por um jornalista sobre os direitos humanos, respondem com silêncios constrangedores;
o país que conseguiu que o Governo Civil de Lisboa deslocasse uma manifestação conjunta da AI e da União Budista para a Torre de Belém para não incomodar o protocolo.

Hu Jintao representa o país que, como referiu José Leite Pereira no JN deste domingo, junta o que de pior têm o comunismo e o capitalismo.

Como no jogo do macaquinho do chinês, o regime fecha os olhos por breves instantes virado contra a parede, mas quando se volta não deixa ninguém respirar, para que não se aproximem do que poucos não querem perder: o poder de comandarem o planeta no século XXI.

5 de novembro de 2010

Barack Obama - A mudança: "Yes, He Can."

No dia em que passam dois anos da sua eleição, Barack Obama continua a combater sobretudo mentalidades, numa tentativa de refazer um país destruído por oito anos de presidência de Georg "the idiot" Bush. Aqui um agradecimento aos da sua "tribo".

O síndrome poético de Alegre e a politiquinhez de Cavaco

Manuel Alegre é um poeta, e por consequência, pelo menos no seu caso, vive num estado de delírio que só lhe faz mal à saúde. Vendo-se preso entre o apoio do PS e do BE, tenta com um jogo de cintura pouco eficaz agradar a gregos e a troianos. Um dos seus principais handycaps na campanha que se avizinha é o de ter um discurso muito parecido com o de há cinco anos atrás, com as baterias apontadas apenas a Cavaco Silva, mas detendo-se em pormenores insignificantes. Poderia ter feito uma maratona controlada e ganhar a corrida apenas com um pouco de desgaste e agora vai ter de fazer um sprint de cem metros sendo que Cavaco colocou o seu bloco de partida cinquenta metros à frente. Cavaco que andou a estudar durante o ano a melhor estratégia a seguir, sem falar muito para não fazer asneiras, a criar tabus onde eles não existiam para que fosse depois empolado o anúncio da sua candidatura, classificado por todos como a notícia mais previsível do ano, tão previsível que Cavaco ficou chateado com Marcelo Rebelo de Sousa por este ter antecipado a data do anúncio: seria essa a única surpresa para dar aos portugueses. Enquanto que de Manuel Alegre se esperavam ideias novas, em Cavaco o discurso acaba por ser sempre o mesmo. Os eleitores já sabem isso e não estão à espera de mais, o que pode ser uma vantagem para o actual presidente.
Em clara pré-campanha desde há muito, tem mandado cá para fora umas farpas a dizer: "estou presente, não se esqueçam de votar em mim". O facto de ter dispensado os outdoors não passa de pura demagogia, já que em todas as aparições públicas, vestindo o fato de presidente, calça as botas de candidato a presidente, num sinal de politiquinhez, a política mesquinha de quem está seguro no lugar.
Manuel Alegre disse há dois dias que "Cavaco não gosta dos políticos", e só fez um favor a Cavaco porque é exactamente essa a ideia que ele quer passar: que não tem nada a ver com a crise e os actuais políticos (como se não tivesse sido político nos últimos trinta anos), relembrando a todos os que nele acreditem que o país só está assim por causa dos outros políticos, Manuel Alegre incluído (não referindo como é óbvio que este tem sido sempre contra as políticas anti-sociais dos últimos anos). Cavaco com a classe política parece um pai a ralhar aos filhos mal comportados. Alegre, de barbas brancas, assemelha-se a um avô a contar histórias aos netos junto à lareira, a passar-lhes a mão pelo cabelo mas a dizer que só têm feito asneiras.

A ideia que passa nos dias que correm é que a Presidência, enquanto instituição democrática, é um cargo distituído de importância, e Cavaco só acentuou isso nos últimos anos. Se Jorge Sampaio foi muitas vezes criticado porque não se percebia metade do que dizia, tão complexas e subtis eram as suas mensagens, com Cavaco não há esse problema: tudo o que ele diz já foi dito por alguém e toda a gente o sabe de antemão.
De facto o que precisamos, para além de um bom governo, é de um verdadeiro líder para o país, um presidente que se quer interventivo e que diz o que pensa. Que não venha com paninhos quentes nestes tempos difíceis, que para isso existem os ex-presidentes da República.
A escolha não vai ser fácil. À direita não existe uma escolha plausível. Ponto parágrafo.
À esquerda as possíveis escolhas não são animadoras: Francisco Lopes nem o PCP sabe quem é, e para além disso é comunista. Fernando Nobre está muito bem na AMI e não tem estofo para a Presidência, ironicamente por não ser político. Sendo uma pessoa de bom senso ia ter problemas a nível internacional, problema comum a Manuel Alegre.
Talvez vote em António Pedro Ribeiro ou Manuel joão Vieira: esses ao menos são delirantes assumidos.    

4 de novembro de 2010

A Internet e os Livros - leituras de um leigo

O motivo que me levou à escrita deste texto foi a leitura de um artigo interessante de Clara Barata no Público: Como a rápida Internet está a conquistar o cérebro aos vagarosos livros. No artigo é repetida a ideia veiculada nos últimos anos de que a internet está a modificar o nosso cérebro e a forma e a velocidade a que o nosso cérebro interpreta o que lê.
Quanto ao que a minha experiência diz respeito não tenho muitas dúvidas: a internet é um meio de distracção como a televisão o era há uns anos atrás e continua a ser. Mas eu quando quero ler um livro, desligo a televisão, fecho o computador e leio. É uma questão de escolha e equilíbrio. Quanto à forma e velocidade como leio, noto apenas que o faço de maneira mais rápida e que fico impaciente mais cedo quando não gosto de um livro, do que ficava há uns anos atrás, mas isso pode ser facilmente justificado, como é óbvio, pelo incremento de exigência na qualidade que vou colocando nas minhas leituras.


No que diz respeito à importância da internet para os livros enquanto produto ou objecto a discussão é outra.
Primeiro, a análise como produto. Neste momento a internet é um meio cada vez mais importante, se não essencial, para as editoras, revistas e autores. Quase todos - especialmente os da nova geração, que representam o futuro da edição - já aderiram aos blogs e ao facebook. Os próprios cronistas e críticos das revistas da especialidade têm blogs e uma franja "significativa" de "fãs" nas redes sociais. São exemplos revistas como a Ler, o Jornal de Letras ou a renascida Os Meus Livros e críticos como José Mário Silva com o Bibliotecário de Babel e Sara Figueiredo Costa com o Cadeirão Voltaire.
A segunda análise, para os livros enquanto objecto. O que dizer dos e-books que ganham aos poucos terreno ao livro tradicional impresso em papel? Como tudo, tens prós e contras: por um lado concentra-se mais informação e aumenta-se a capacidade de armazenamento e a poupança de espaço; por outro lado perde-se a beleza das capas e o prazer de pegar num livro, analisar as badanas e sentir o cheiro do livro antes de começar a lê-lo.


E a relação dos livros com a internet, o que aí se fala deles e os que nela ou dela nascem? O tempo - que tanta falta faz nos dias de hoje - será o verdadeiro julgador que se encarregará de separar o trigo do joio. Assim como os leitores nas livrarias têm de fazer escolhas e com a excepção de algumas bestas céleres, para quem souber escolher, o que não presta acaba por desaparecer, também do lixo que surge nos biliões de páginas virtuais a qualidade acabará por vir à tona.


Como conclusão reitero o que escrevi no início: é tudo uma questão de escolha e de equilíbrio: entre o livro puro e a internet pura ficam a meio termo os ebooks. Serão eles a solução para um convívio harmonioso para quem gosta de ler e de navegar na internet?
A mim ainda não me convenceram. E a vocês?

3 de novembro de 2010

A nova noite do Porto

Permito-me sublinhar - a propósito de uma reportagem do JN do passado sábado - três dos argumentos apontados por um entrevistado para o sucesso da nova movida portuense: o aumento de vinte por cento dos alunos de Erasmus, responsabilidade da UP; a razia registada na zona industrial pelas rusgas da Noite Branca, responsabilidade da PJ; e finalmente a desertificação da baixa, que permite aos bares estarem abertos até tarde sem receberem queixas dos vizinhos, esta última da responsabilidade da (in)acção da Câmara Municipal do Porto. É até irónico que uma não acção por parte do executivo camarário resulte numa coisa positiva para a cidade.
Só espero que a nova movida não descambe num caos de pessoas e carros pela noite dentro. Que já é difícil estacionar a partir de determinada hora e que as filas enchem as principais artérias do centro é um facto, e um facto a que a Câmara deveria estar atenta por forma a ajudar ao desenvolvimento do centro da cidade, já que até aqui todo o esforço tem sido feito pelos investidores privados.

2 de novembro de 2010

Série - Porto Destruído

Não, não é o Coliseu de Roma. É um antigo colégio junto ao Edifício Transparente/Castelo do Queijo no Porto. Das duas uma, ou o elegem a melhor "Monumento em ruínas" da década, ou o deitam de uma vez abaixo. Li na internet uma notícia do JN de Abril de 2009 em que referia que era provável as obras acontecerem em Junho desse ano.
Em Novembro de 2010 estamos na mesma. Que surpresa!!

31 de outubro de 2010

Richard Yates: "O Desfile de Primavera"

O Desfile de Primavera, com primeira edição em 1976 e re-editado pela Quetzal em 2010, apesar de não ter atingido, segundo a crítica, um patamar de excelência tão elevado como Revolutionary Road - talvez o mais lido e conhecido livro do autor, finalista do National Book Award no ano em que foi publicado - é considerado um dos melhores romances do escritor norte-americano.
A história relata a vida de duas irmãs e a relação algo conflituosa com a sua mãe, desde os anos trinta aos setenta do século passado. A mãe, Pookie (baseada nalguns traços da personalidade na própria mãe de Yates, Dookie) sempre quis viver acima das suas posses e dar o maior conforto possível às filhas. O seu divórcio com o pai de Sarah e Emily, revisor numa revista, foi para as vidas das duas irmãs uma marca precoce, como a cicatriz “azulada que descia da sobrancelha até à pálpebra”, que Sarah fez numa brincadeira de criança. O autor confronta-nos na primeira frase do livro com essa premissa, como que desafiando o leitor a ler o resto do livro tendo em conta esse acontecimento em particular. O próprio Richard Yates foi casado duas vezes e os seus pais divorciaram-se quando o autor tinha três anos.


Emily Grimes era a mais atinada e sensata das duas irmãs, mas também a mais insegura.


“Uma vez durante o dia, quando regressava ao escritório depois do almoço, viu o rosto petulante e macilento de uma mulher – um rosto que qualquer pessoa diria estar a envelhecer, repleto de rugas e olheiras, com uma boca débil e frustrada – e descobriu chocada que era ela própria, apanhada abruptamente no reflexo do vidro espelhado da montra de uma loja.”p. 224
Sarah era a mais bonita das duas e a que adoptou um estilo de vida mais conservador, casando cedo e tendo filhos. O nascimento dos filhos de Sarah era apenas mais uma oportunidade para Pookie criticar algo na vida das filhas.
“ – Oh, meu Deus, só fazem é procriar – disse Pookie ao receber a notícia da terceira gravidez. – Eu pensava que só os camponeses italianos é que faziam as coisas assim.


A terceira gravidez acabou por ser a última (...) mas Pookie encontrava sempre forma de sugerir, com um rolar compreensivo de olhos, que três era uma fartura.” p.53
O divórcio e a relação algo rancorosa da mãe com as filhas, e com o seu próprio destino, acaba por explicar ou pelo menos balizar em termos comparativos todos os outros problemas que afectarão a família ao longo dos anos: desde os problemas com a bebida aos traumas de infância mal resolvidos, as mudanças contínuas de casa, os casos de violência doméstica. Em resumo, um estudo literário claro – mas também um estudo social ao longo de várias décadas da sociedade americana e das suas mudanças culturais.


A crueza, a crueldade da vida, mas acima de tudo a realidade, estão também bem patentes na escrita de Yates.
(...) “Segurando três ou quatro garrafas debaixo de um dos braços, ela usava a mão livre para gesticular pelo apartamento. Todas as superfícies estavam encardidas. Os cinzeiros abarrotavam de beatas. – Anda cá ver isto. – Conduziu Emily à casa de banho e apontou para dentro da sanita, que estava castanha acima e abaixo da linha de água. – Oh, se ao menos ela tivesse ficado na cidade – disse Sarah -, com coisas para fazer e pessoas para ver. Porque aqui nunca havia nada para ela fazer. Ia sempre para a nossa casa, e não via televisão nem nos deixava ver televisão; punha-se a falar e a falar e a falar até Tony ficar à beira da loucura, e ela... ela...


- Eu sei, mana – disse Emily.


Desceram as escadas (...) e carregaram as braçadas de garrafas de uísque até à porta da cozinha da casa principal, onde as empurraram para o fundo de um caixote do lixo cheio de moscas.” p.140


Tudo parece óbvio, até o facto de termos de ler todas as palavras atentamente para absorvermos o segundo sentido implícito na escrita. O seu sentido de humor é silencioso e irónico. Sem preciosismos na prosa, sem metáforas inutéis. O que se passou em cada cena é o que aconteceu ou poderia acontecer na realidade. É o que o autor nos conta e aquilo em que acreditamos.
Embora Richard Yates sempre tenha sido bastante apreciado pela crítica especializada, nunca houve um acompanhamento no volume de vendas dos seus livros. Na altura da sua morte em 1992, praticamente todas as edições dos seus livros estavam esgotadas e sem perspectivas de re-edição. Esse facto alterou-se em parte devido a uma biografia escrita por Blake Bailey em 2003, “Uma Honestidade Trágica: Vida e Obra de Richard Yates” e pelo filme Revolutionary Road de Sam Mendes em 2008.


Em relação à edição da Quetzal é de facto cuidada: no design da capa, sóbrio e bem conseguido. Nota negativa para a revisão, que necessita ela própria de uma revisão numa possível edição futura.
Desfile de Primavera
Richard Yates
Quetzal
2010