31 de outubro de 2010

Richard Yates: "O Desfile de Primavera"

O Desfile de Primavera, com primeira edição em 1976 e re-editado pela Quetzal em 2010, apesar de não ter atingido, segundo a crítica, um patamar de excelência tão elevado como Revolutionary Road - talvez o mais lido e conhecido livro do autor, finalista do National Book Award no ano em que foi publicado - é considerado um dos melhores romances do escritor norte-americano.
A história relata a vida de duas irmãs e a relação algo conflituosa com a sua mãe, desde os anos trinta aos setenta do século passado. A mãe, Pookie (baseada nalguns traços da personalidade na própria mãe de Yates, Dookie) sempre quis viver acima das suas posses e dar o maior conforto possível às filhas. O seu divórcio com o pai de Sarah e Emily, revisor numa revista, foi para as vidas das duas irmãs uma marca precoce, como a cicatriz “azulada que descia da sobrancelha até à pálpebra”, que Sarah fez numa brincadeira de criança. O autor confronta-nos na primeira frase do livro com essa premissa, como que desafiando o leitor a ler o resto do livro tendo em conta esse acontecimento em particular. O próprio Richard Yates foi casado duas vezes e os seus pais divorciaram-se quando o autor tinha três anos.


Emily Grimes era a mais atinada e sensata das duas irmãs, mas também a mais insegura.


“Uma vez durante o dia, quando regressava ao escritório depois do almoço, viu o rosto petulante e macilento de uma mulher – um rosto que qualquer pessoa diria estar a envelhecer, repleto de rugas e olheiras, com uma boca débil e frustrada – e descobriu chocada que era ela própria, apanhada abruptamente no reflexo do vidro espelhado da montra de uma loja.”p. 224
Sarah era a mais bonita das duas e a que adoptou um estilo de vida mais conservador, casando cedo e tendo filhos. O nascimento dos filhos de Sarah era apenas mais uma oportunidade para Pookie criticar algo na vida das filhas.
“ – Oh, meu Deus, só fazem é procriar – disse Pookie ao receber a notícia da terceira gravidez. – Eu pensava que só os camponeses italianos é que faziam as coisas assim.


A terceira gravidez acabou por ser a última (...) mas Pookie encontrava sempre forma de sugerir, com um rolar compreensivo de olhos, que três era uma fartura.” p.53
O divórcio e a relação algo rancorosa da mãe com as filhas, e com o seu próprio destino, acaba por explicar ou pelo menos balizar em termos comparativos todos os outros problemas que afectarão a família ao longo dos anos: desde os problemas com a bebida aos traumas de infância mal resolvidos, as mudanças contínuas de casa, os casos de violência doméstica. Em resumo, um estudo literário claro – mas também um estudo social ao longo de várias décadas da sociedade americana e das suas mudanças culturais.


A crueza, a crueldade da vida, mas acima de tudo a realidade, estão também bem patentes na escrita de Yates.
(...) “Segurando três ou quatro garrafas debaixo de um dos braços, ela usava a mão livre para gesticular pelo apartamento. Todas as superfícies estavam encardidas. Os cinzeiros abarrotavam de beatas. – Anda cá ver isto. – Conduziu Emily à casa de banho e apontou para dentro da sanita, que estava castanha acima e abaixo da linha de água. – Oh, se ao menos ela tivesse ficado na cidade – disse Sarah -, com coisas para fazer e pessoas para ver. Porque aqui nunca havia nada para ela fazer. Ia sempre para a nossa casa, e não via televisão nem nos deixava ver televisão; punha-se a falar e a falar e a falar até Tony ficar à beira da loucura, e ela... ela...


- Eu sei, mana – disse Emily.


Desceram as escadas (...) e carregaram as braçadas de garrafas de uísque até à porta da cozinha da casa principal, onde as empurraram para o fundo de um caixote do lixo cheio de moscas.” p.140


Tudo parece óbvio, até o facto de termos de ler todas as palavras atentamente para absorvermos o segundo sentido implícito na escrita. O seu sentido de humor é silencioso e irónico. Sem preciosismos na prosa, sem metáforas inutéis. O que se passou em cada cena é o que aconteceu ou poderia acontecer na realidade. É o que o autor nos conta e aquilo em que acreditamos.
Embora Richard Yates sempre tenha sido bastante apreciado pela crítica especializada, nunca houve um acompanhamento no volume de vendas dos seus livros. Na altura da sua morte em 1992, praticamente todas as edições dos seus livros estavam esgotadas e sem perspectivas de re-edição. Esse facto alterou-se em parte devido a uma biografia escrita por Blake Bailey em 2003, “Uma Honestidade Trágica: Vida e Obra de Richard Yates” e pelo filme Revolutionary Road de Sam Mendes em 2008.


Em relação à edição da Quetzal é de facto cuidada: no design da capa, sóbrio e bem conseguido. Nota negativa para a revisão, que necessita ela própria de uma revisão numa possível edição futura.
Desfile de Primavera
Richard Yates
Quetzal
2010

Richard Yates sobre Lisboa (O Desfile da Primavera, Quetzal)

"Insistiam ambos que gostaram de Barcelona - tinha árvores e uma brisa marinha; encontraram um quarto arejado a bom preço, e havia lugares agradáveis para se sentar e bebia uma cerveja ao fim do dia - mas Madrid era tão inescrutável e implacável quanto Londres. A única coisa boa em Madrid, dizia Jack, era o bar do hotel onde ficaram, em que serviam boas quantidades de uísque sempre que lhes pedia um güisqui escoso.
Depois foram a Lisboa, e chegou a altura de regressarem a casa. "

30 de outubro de 2010

POEMA ENCLAUSURADO (SENSU LATU)

Faço um brinde:

aos autocratas tecnocratas burocratas pensocratas e idiocratas,
aos sociais e aos democratas, aos socratas e coelhatas,
aos revolucionários contra-revolucionários e reaccionários,
aos ramalhos que não dão cavaco às tropas,
aos empinocados e todos os engravatados que nos tomam por lorpas,
aos descapotáveis impermeáveis e afins,
aos permeáveis a pressões desmesuráveis e tchin-tchins,
à casa pia que pouco pia mas muito piou,
aos jornalistas que se acham a rainha do baile quando o baile já findou,
ao lino, ao pinho, ao amigo chavez que tem abraço de demo-crata e pinta de ditador,
e às chaves que não sobrevivem ao litoral, que vivem e morrem no interior,
às autarquias oligarquias e taquicardias,
aos palermas e paspalhos que poupam no horário mas que esbanjam no erário,
à magistratura a quem são cortados susbsídios,
aos pobres que não os recebem e que comem todos os dias com suicídios,
às fundações, institutos e seus chefes (im)polutos
às auto-estradas escutadas vigiadas e maltratadas,
às nacionais internacionais e assim assim,
aos futebolistas e suas cristas, às claques e tostas mistas.
à segurança, ao social, à segurança do social,
à mulher do segurança e ao orfão social,
a todos os orçamentos de estado,
que ou estão em mau estado ou nos deixam em mau estado,
a todos os que vivem com salários obscenos
e aos que vivem com menos
à construção do tgv e ao plano de reflorestamento que ninguém os vê
à inovação tecnológica que vai tirar da miséria dois milhões de pessoas
à distribuição dos fundos comunitários
(a maior parte dos inquiridos escolhem vermelho-ferrari com pisos rebaixados)
à subsidio-dependência, incongruência e desistência

a todos os dez milhões que não fazem nada
e ao palerma que se esqueceu de destrancar a porta de emergência
deste país à beira-mar enclausurado.