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5 de dezembro de 2010

Conto: os olhos do meu pai

A minha mãe levantou-se e olhou na direcção da figura franzina: um enrugado de sentimentos misturados entre alegria e alívio. os flancos da alcofa cobertos pela brancura de um lenço a cheirar a desinfectante. os sentimentos enrugados conjugavam-se na forma de pequenos braços e pequenas pernas; esticavam-se numa tentativa frustrada de expulsar a preguiça. olhei à volta aproveitando os poucos momentos em que me era permitida a existência no quarto. o meu pai ordenou que me sentasse. disse-me para não incomodar, como se a minha respiração pudesse acordar todos os doentes em coma do hospital.
No hospital não se faz barulho, nem se brinca.
encolhi-me: vagueei ligeira pelo quarto procurando onde me sentar. finalmente uma cadeira branca tapada por uma cortina e perdida num canto do quarto. sentei-me e mirei os sapatos que não chegavam ao chão. os sapatos pretos e luzidios. não os largava, eram a minha prenda por ter feito a segunda comunhão.
Nos dias de hoje oferecem-se prendas até para que os meninos rezem, rezou a minha madrinha, no dia em que os experimentei no chão frio da igreja. os sapatos brilhavam quando o sol lhes batia. olhei de novo para cima colocando-me em escala: o meu pai uma árvore abanada pelo vento; a minha mãe estava mais calma. sorria para mim. devolvi-lhe o sorriso. no sorriso da minha mãe via o mar. por isso olhava muitas vezes para ela. porque gostavámos da praia. o meu pai não. não sei o que via nos olhos do meu pai, mas não era o mar. a enfermeira que nos fazia companhia saiu do quarto depois de acomodar novamente a minha mãe na cama. o meu pai continuava nervoso. fez festas na testa da minha irmã. ainda não tinham decidido o nome. ou não o tinham dito em voz alta. pegou em mim ao colo e inclinou-me sobre a alcofa.
A tua irmã é muito bonita. Tu também, mas a tua irmã é diferente. ouviu-se um barulho atrás de nós: o avô espreitava da porta e os meus pés pisavam de novo o chão do quarto para receber um beijo na testa. depois desse breve momento a alcofa uma ilha rodeada de beijos e abraços do avô, do pai e de quem aparecesse. o meu corpo um pequeno barco à deriva. sem bússola e sem norte.
não sei o que via nos olhos do meu pai mas não era o mar. o meu pai...a partir daquele dia, simplesmente deixou de ver os meus olhos.

28 de novembro de 2010

Conto: intervalo

Considero-me uma pessoa simples. nunca saí da minha cidade, mas sinto-me como se nunca a tivesse vivido. paradoxalmente, já viajei por todo o mundo, mas sem sair do sofá. naquele dia até estrelas vi. mas isso já passou. ou não passou, mas não quero falar nisso. do que eu gosto mesmo é de filmes. no sofá sou vítima desses filmes. nessas alturas as noites são mágicas. esforço-me até por não pensar em nada. limito-me a manter os olhos e os ouvidos abertos para absorver aquilo que me interessa. não penso em nada. não penso em ninguém. não penso em mim sequer. o que para um egocêntrico convicto é difícil de confessar. limito-me a vegetar, com os olhos colados num quadrado pequeno chamado televisor e em que homens ainda mais pequenos se movem. quando a luz vinda de fora me incomoda fecho as cortinas. sento-me. e então tudo pára. separo-me do mundo. mas os homens no quadrado pequeno também páram. permanecem estáticos durante os segundos seguintes. levanto a perna direita e a pausa extingue-se. os pequenos homens recebem autorização para se moverem de novo. com um gesto irritado atiro o comando do televisor contra a parede e rio-me sozinho. os homens no quadrado pequeno voltam a parar. é a sua memória que falha. a memória que nasce como instrumento da consciência mas que cai facilmente na armadilha do tempo. perdido o meu olhar na cortina, as duas personagens enfrentam-se dentro de uma sala. apanhando-me distraído, um dos homens dispara dois tiros na zona do coração do outro homem. silêncio. as balas ficaram a zumbir-me nos ouvidos. o televisor estava muito alto. mudo do video para a televisão e as personagens dão lugar a um intervalo publicitário. não tenho paciência para intervalos. nessas alturas deixo de escutar o mundo porque deixa de fazer sentido. e abro de novo as cortinas para perceber onde estou. o resto deixa de me interessar. como não me interessa a família. nem a religião. nem o futebol. olho para baixo. um copo de uísque numa mão e um copo de vodka na outra. mais tarde decido qual dos dois irei beber primeiro. sinto-me a melhor pessoa do mundo. e a mais inútil. os meus olhos fecham-se durante algum tempo. acordo com um barulho vindo da entrada da casa. a porta da sala abre-se. entra um homem. puxo da pistola escondida entre duas almofadas do sofá. disparo dois tiros na zona do coração do outro homem. ele cai no chão. inerte. com os olhos abertos virados para a janela. ligo o televisor. os anúncios não são assim tão aborrecidos ao final da tarde.

texto alterado a partir do conto com o mesmo nome publicado na Revista Ficcões Brasil em Junho.

24 de março de 2010

Conto: bolo de chocolate

A mulher tinha-lhe dito ao telefone que era ali que a encontraria. Entra. Amanhã, às seis da tarde em ponto, entra no bar, tal como combinámos. o bar era acolhedor e de tamanho reduzido. L. nunca lá tinha entrado, e tal como noutras ocasiões em que desconhecia o seu destino, antecipou-se na hora de chegada para não correr o risco de se atrasar. o relógio na parede do bar, com uma pintura abstracta a colorir o fundo, marcava dezassete horas e quarenta e cinco minutos. a mulher disse-lhe também que esperasse por ela sentado na mesa do canto e que pedisse uma carta. depois de se sentar num cadeirão antigo demasiadamente desconfortável para a magreza dos seus ossos, olhou em volta e um pequeno homem ergueu-se como que por magia por detrás do balcão: a cabeça era anormalmente grande para o resto do corpo e andava de uma maneira estranha, como se alguém o puxasse constantemente para trás. quando se abeirou da mesa onde L. se tinha sentado, acenou apenas com a cabeça e L. pediu a carta, esperando que o empregado soubesse o que queria ele dizer com aquilo. o empregado voltou a acenar com a cabeça num gesto mecânico, deu meia volta, esticou-se todo por cima do balcão dando um pequeno salto de canguru, vasculhou cegamente, regressou num passo arrastado e postou-se hirto durante breves segundos na frente de L. pendurou então o braço direito no ar, como que suspenso por uma mola numa corda de roupa invisível, e num gesto abusivamente solene entregou a L. um pequeno papel dobrado onde se podia ler em letra pequena mas bem legível: “Vou chegar ligeiramente atrasada. Pede o bolo de chocolate. Saboreia-o e a seguir pede outra carta.” embora o bolo de chocolate não fosse dos seus preferidos e nunca tivesse sido dado a jogos infantis, L. não quis contrariar a vontade da mulher e pediu o bolo. afinal, estavam ali para celebrar o aniversário de casamento. o empregado deu um passo atrás como se tivesse sido pisado e perguntou: Tem a certeza? Sim, tenho a certeza. Se pedi bolo de chocolate é porque quero bolo de chocolate. Mas tem mesmo a certeza? Temos também uma óptima tarte de maçã. Quero bolo de chocolate, afirmou peremptoriamente L. É o que aqui está escrito. Bem, se aí está escrito faço-lhe a vontade com todo o gosto, disse o empregado meio zangado e de nariz petulante. Em seguida e num movimento contínuo, deu uma nova meia volta de bailarina e dirigiu-se ao balcão. Voltou passados uns minutos com um prato simples mas bem decorado. Bom proveito. É da casa? Não, não. Esse veio de encomenda. se antes de L. pôr o garfo à boca, o empregado o tivesse ouvido confessar em voz alta que o bolo de chocolate não era um dos seus preferidos, e depois tivesse visto a forma como esfolou o prato até raspar no vidro, tomá-lo-ia por um mentiroso, mas o bolo devia estar realmente uma delícia. No fim da primeira surpresa L. emparelhou os talheres de um dos lados do prato e pediu a nova carta. ficou no entanto com a ideia que o empregado não o ouvira, mas isso talvez se devesse ao volume da música ambiente que pelo que parecia a Luís abanava de forma exagerada as paredes falsamente rústicas do bar. em poucos minutos o ambiente tinha-se tornado pesado, e embora L. não tivesse pedido nada para beber, parecia que tinha esvaziado o balcão, tal era a neblina que agora lhe cegava os olhos. no bar, apenas outro cliente que entrara depois de L. passados uns minutos. L. reconheceu-lhe as feições mas não conseguiu precisar de onde. o outro homem parecia ter optado pela tarte de maçã e olhava meio desconfiado para as pepitas de chocolate abandonadas no prato de L., como se o culpasse do pecado de ter ficado com a única fatia de bolo de chocolate no mundo. mas também ele parecia comer com gosto a tarte de maçã que lhe tinha calhado na roleta russa. L. fez então um novo esforço para endireitar as costas na cadeira de modo a ganhar novo folêgo e pediu em voz alta a segunda carta. o empregado voltou com uma expressão meio desfocada, ou então era Luís que via já tudo o que se mexia dessa perspectiva. L. abriu os olhos na direcção das mãos, e leu de forma pausada, aproximando e afastando o pedaço de papel, como se num dado momento as letras fossem gigantes e no momento seguinte tivessem um tamanho liliputiano. “Espero que tenhas gostado da tarte de maçã. Fi-la com todo o amor. Tem cuidado.”  a mulher de Luís entrou passados uns segundos, olhando para os dois lados do bar, abanando a cabeça, e levando as mãos à cara. agora sim tudo se quedava completamente desfocado e uma dor no peito, lenta e agonizante, enchia o último suspiro de L. antes de este reconhecer o homem que tinha ficado com a sua tarte de maçã, ver um pequeno pedaço de papel cair-lhe das mãos, perceber que tinha chegado fatalmente cedo ao encontro com a sua mulher e fechar pela última vez os olhos.

21 de março de 2010

Conto: pausa

Conheci-a numa paragem de autocarro. conhecer é um modo de dizer já que naquele dia trocámos apenas duas palavras cada um. Bom dia. Bom dia. respondeu ao meu cumprimento apenas para ser gentil, porque pela sua cara o dia não lhe estava a correr bem. era uma mulher bonita mas a gabardine tapava a maior parte do seu corpo. apenas distinguia as suas pernas da canela para baixo e o início dos pés entalados nuns sapatos pretos. estava suficientemente perto de mim para lhe sentir o hálito de tabaco. uns minutos antes tinha atirado um cigarro quase acabado de acender para a sarjeta que absorvia ainda lentamente a muita chuva que tinha caído uma meia hora antes. o seu telemóvel tocou. atendeu-o como se estivesse sozinha na paragem: Sim, sou eu. Quem mais querias que fosse? Ela? pausa. Olha, vai-te foder mais as tuas desculpas. É sempre a mesma lengalenga. No fundo vocês homens são todos iguais. Quando estão com outras mulheres e sempre que podem só pensam com o que têm no meio das pernas. pausa. E depois do caldo entornado vêm com as falinhas mansas: “Juro que foi a primeira” e “Nunca te quis magoar”. E depois, quando já não o podem negar: “Querida, prometo que foi a última vez.” quase pausa. Cala-te que agora sou eu que falo e vais-me ouvir até ao final. Não me interessa o que é que a minha mãe diz. Sou adulta e ela já não manda em mim há muitos anos e não a chames à baila só porque ela sempre gostou de ti. nova pausa. os seus cabelos abanavam-se de fúria mais do que pelo vento e os pequenos raios de sol que conseguiam vencer as nuvens amaciavam-lhe a pele de contornos suaves. o tom da sua voz era no entanto cada vez menos macio e cada vez mais alto e a minha curiosidade pela conversa e pelo seu cheiro ia-me aproximando do seu corpo como um íman de coscuvilhice da vida alheia. a pausa foi curta e ela voltou à carga para o que parecia ser a última estocada no seu oponente debilitado e moribundo. Já te disse ontem que tens até ao final da semana. Não quero saber que não tenhas para onde ir. Por mim podes ir morar para debaixo da ponte, desde que não te ponha mais a vista em cima. pausa. Olha, estou farta disto. Vai-te foder mais a tua vidinha. desligou o telemóvel e falou em voz alta para ninguém em particular mas sabendo que eu a ouvia. Os homens são mesmo uns filhos da puta. quando olhou para mim no fim da frase e sorriu, sabia que me tinha chamado a atenção, mas também sabia que se ficássemos juntos não a traíria. era muito complicada e um bocado chata de ouvir. para além de que sempre fui muito cioso da minha privacidade para ver a minha vida, mesmo não o sabendo, discutida numa paragem de autocarro.

23 de fevereiro de 2010

Conto: ilusão

Desço a rua e entro na mercearia. antes de me sentar por detrás do balcão ouço um barulho: alguém apita lá fora. volto a sair. trazem-me as mercearias da semana. no passeio tropeço no Samuel, o que me surpreende: aparece-me como uma ilusão do sol, um espelho mal colocado que se reflecte e me fere a vista. ele não se queixa: reconhece-me pelo peso dos meus passos e apenas se chega para o lado dando-me a entender que não quer incomodar. detenho-me uns minutos a falar com ele depois de descarregar a mercadoria, enquanto a carrinha se afasta para outro canto da cidade. pergunto-lhe como estão as coisas lá por casa. ele responde a medo, sem conseguir articular bem as palavras: o senhorio deixou-os ficar mais dois meses sem pagar a renda e a mãe já reconhece os vizinhos e algumas pessoas da família. a perda de memória é uma coisa horrível mas é uma coisa com que se vive. Com a morte vive-se pior, disse-me a minha mãe antes de morrer. despeço-me do Samuel e entro. não gosto que entre na mercearia. perde-se na imensidão dos produtos que agora arrumo nas prateleiras: o sabão para o tanque frio da roupa onde mulheres com calos agitam os braços para afugentar o frio; o feijão para a sopa do jardim-escola que fica ao virar da esquina; ou a fruta que tombará na lancheira vermelha, com o rato Mickey estampado em posição jocosa. depois de separar os produtos por género, tamanho e feitio, pego numa maçã do cesto para a vir saborear cá fora. no passeio vejo de novo o Samuel. ainda não foi embora. levanta-se quando me sente perto. passo-lhe a maçã para a mão, digo-lhe que já é tarde e tento-me despedir com um aviso afirmativo: Não te esqueças da lancheira: o rato mickey não gosta de almoçar sozinho. ele respondeu de pronto: Avô, levas-me a casa? Não vieste sozinho para cá? O caminho é o mesmo, só que ao contrário. Sim, mas agora está mais escuro, e como dizia a minha mãe antes de perder a memória: quando eu me for, a única luz que verás será a voz do teu avô, e os únicos raios de sol virão das suas mãos. A tua mãe devia-se ter dedicado à poesia em vez de falar da vida dos outros. depois de ouvir calmamente a minha resposta, dobrou a bengala em quatro partes iguais, ajeitou os óculos escuros e prendeu a sua mão na minha fazendo força até os meus passos acompanharem os dele. não me deu tempo para fechar a mercearia: no final de contas, a poesia nunca teve horários.

18 de fevereiro de 2010

Conto: telhado com clarabóias

Há dois dias atrás podia afirmar que vivia numa casa com vista para o mar. uma casa normal: com portas, janelas, um telhado com clarabóias para deixar entrar mais luz. no quarto, afastada uns bons três metros da cama, a secretária de mogno onde estavam pousados os contos inacabados para enviar ao meu novo editor. na sala, a mesa de bilhar onde jogava umas partidas quando o meu pai vinha de visita. a semana passada retribuí-lhe a visita depois de muita insistência. talvez isso me tenha salvo a vida. é comovente pensar como um pai pode tentar salvar um filho mesmo sabendo estar condenado ao fracasso. ao fundo da sala ficava a lareira, onde lia à noite acompanhado de um Porto. por cima da lareira a última fotografia que tirámos juntos, tu e eu, exactamente em frente a esta casa de que agora te falo. tenho consciência do ridículo de te descrever a casa pela qual nos apaixonámos na nossa primeira visita à ilha, a casa que tu própria decoraste e à qual deste vida própria. há dois dias atrás, para além de casa, ainda tinha vida, porque ali habitavam todas as memórias da nossa existência em comum. ali guardava o que me prendia a esta ilha em que se transformou a sociabilização da minha alma depois de... as restantes pessoas simples gotas de água do oceano, irrelevantes para terem significado mas que nos conseguiram separar. irónico o mesmo elemento que te afastou de mim levar agora as únicas lembranças físicas que me restavam: as mil e uma cartas, as conchas com o nosso nome escrito e pintadas à mão com uma inocência infantil, a fotografia das nossas pegadas na areia levadas no segundo seguinte pelo mar. da nossa casa apenas resta o telhado, ancorado numa rocha, virado com a barriga para cima numa posição submissa perante o destino, com as entranhas à mostra e os vidros das clarabóias todos quebrados.
exactamente como eu.

16 de fevereiro de 2010

Conto: aquele cão que

Sempre gostei de animais, sobretudo de cães. todas as relações que tive com os da minha espécie ficaram aquém das expectativas: ou confiei de mais e depois saí desiludido com o resultado, ou confiaram de mais em mim e eu não era bem aquilo de que estavam à espera. com os cães nunca tive esse problema: comem, dormem, precisam de ir à rua uma ou duas vezes por dia e andam atrás da cauda quando lhes pára o relógio. do último cão que me ficou na memória não lhe conheci os hábitos em detalhe: não sei se comia muito, se dormia muito, se ía muitas vezes à rua. mas parava-lhe o relógio. há cerca de dois meses, zanguei-me com o televisor e atirei-lhe com o comando: nenhum dos cem canais do cabo me agradava. peguei num livro. tinha comprado na semana anterior Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar de Lobo Antunes. quando me sentei a ler ouvi um latido, e depois outro e ainda outro. não parava. o cão ladrava e no fim acabava com um pequeno uivo, quase a medo, mas que era alto o suficiente para o ouvir no andar de cima. esperei cinco, dez minutos mas não havia maneira de o cão se calar. não tinha avançado mais do que duas páginas e precisava de me concentrar: comecei a ler em voz alta, de modo a que o cão me ouvisse tanto como eu o ouvia a ele. parava em cada pausa para recuperar o fôlego e lia cada frase cada vez mais alto como se estivesse perante uma sala cheia de ouvintes. por entre as minhas palavras deixei de ouvir o cão. calei-me também. o cão voltou a ladrar e eu voltei à minha leitura em voz alta, parando apenas passado meia hora quando a minha garganta se assemelhava a um rio desértico no pico do Verão. entretanto ouvi o barulho de uma porta a fechar. a dona do cão, com quem me cruzara uma ou duas vezes se tanto, tinha chegado. nas semanas seguintes o ritual repetiu-se: a dona saía, o cão ladrava: eu pegava no livro e lia em voz alta: o cão calava-se e ouvia. ficávamos nisto até a dona chegar. há cerca de quinze dias deixei de o ouvir. senti a dona sair e fiquei em suspenso. irritou-me o facto de não o ouvir ladrar. que direito tinha ele afinal para não ladrar quando a dona saía? deixei passar uma, duas semanas, até que hoje ganhei coragem para falar com a dona. ouvi a chave da porta do seu apartamento a ganhar vida e um estrondo abafado no andar de baixo. desci apressadamente e fiz-lhe notar a minha presença com uma tosse que acordou as aranhas no corrimão das escadas. ela virou-se e encarou-me. perguntei-lhe pelo cão e expliquei-lhe o que se passava: sempre que ela saía o cão ladrava, mas quando lia em voz alta Lobo Antunes o cão calava-se. ela olhou para mim como olharia um psiquiatra pronto a internar-me e recomeçou a descer as escadas. falei de novo, desta vez num tom de voz mais alto: Percebeu o que eu disse? Os livros do António Lobo Antunes... ela interrompeu-me: Oh meu filho, qual lobo, qual raposa. Eu gosto é de novela. E não sei se o meu cão gostava assim tanto desse lobo. Há duas semanas deu-lhe um demónio no corpo e mandou-se da varanda quando saí para tomar café. Passe bem. dito isto virou-me as costas, com o rabo a gingar pelas escadas abaixo. regressei ao apartamento e fechei a porta. peguei no livro e sentei-me a ler no sofá, em silêncio, e a pensar que não seria má ideia retomar as minhas relações com outros humanos: ao menos sei com o que posso contar.

7 de fevereiro de 2010

Conto: serpente e gazela

Encosto-me no sofá com a cabeça sonolenta e as mãos unidas entre as pernas. o meu corpo um feto por nascer. uma taça de gelatina esquecida no fim do casamento, tremendo em cima de uma bandeja. Sossega. Sossega que te faço carinhos na cara, disseste tu de manhã, depois de me largares o pescoço. ironicamente ou não, nunca ouves o que te digo. não respondes às minhas perguntas. não ouves as minhas respostas. o nosso filho, a brincar em frente à lareira, com a coroa em papel que trouxe da escola. os joelhos esfolados numa alegria desconfortável ignorando também as tuas respostas e as minhas perguntas. assomo à janela. o frio passa pelas frestas na direcção da minha cara e aninha-se a um canto da sala. um arrepio trilha-me a espinha. a mangueira da rega serpenteia amarela pelo jardim. finalmente recolhe-se e enrola-se no apoio aparafusado na parede, como se esmagasse uma gazela indefesa. na cozinha a comida, desajeitada na espera, esfria no prato. entras. sinto a tua respiração quando fechas a porta e penduras o casaco no bengaleiro: os teus braços, as tuas mãos pairam no ar num sussurro doentio. o último quadro que pintei encostado na arca aos pés da cama: o teu corpo no quintal com uma cruz dissimulada no último centímetro de terra. segues directo para o quarto, sem comeres, sem tomares banho, sem dares um beijo de boa noite ao teu filho. o filme passa em fastforward: chamas-me. entro e deito-me na cama. abro as pernas e entras dentro de mim como um pêndulo de relógio: tic-tac tic-tac tic-tac. mecânica. pura mecânica. a explosão da mina no meio do mato. o teu peso a afundar-se na cama. uma lágrima nos lençóis. a casa toda por arrumar. a nossa vida por arrumar. a garrafa de vinho na cozinha. os talheres desarrumados por cima dos pratos.o bengaleiro caído no meio do corredor. sais. chego-me de novo à janela. esfrego as mãos e sinto o metal. tento atirar o anel pela janela, mas uma barreira de vidro impede-me. o aro de ouro roda desamparado por entre as pernas. deito-me novamente no sofá: o meu corpo uma taça de gelatina que esqueceste no dia do nosso casamento, tremendo em cima de uma bandeja. no topo da gelatina um desenho moldado pelos anos: a serpente esmagando a gazela até esta deixar de respirar.

1 de fevereiro de 2010

Conto: acidente (II)

Depois do acidente fiquei ao cuidado do meu avô. a nossa relação até àquela data tinha sido uma relação convencional de avô e neto. só naquela altura lhe dei a importância que achei que ele nunca teria: seria um pai para mim. e porque todos acharam que tinha ficado muito afectado com o acidente fizeram com que mudasse: de escola, de casa, de amigos. mudei até a minha maneira de respirar. no que dizia respeito ao que eu pensava em relação a mim próprio tinha pensamentos contraditórios: saíra-me um fardo das costas, uma sombra que me fazia sumir todos os dias, mas de cada vez que olhava ao espelho levava um soco no estômago: aquele não era eu.
à medida que os anos foram passando, aquele cheiro a óleo a pingar no chão da garagem foi-se impregnando na minha pele: entranhou-se nos meus poros. aos poucos e poucos tornou-se parte do meu cheiro e da minha própria personalidade: nauseabunda e gasta. não raras vezes acordava a meio da noite todo transpirado: as paredes do meu quarto transformadas nas paredes da garagem, e era aí que eu via o pára-choques ainda encostado e a mancha de óleo no chão.
veio-me este pensamento à memória quando o meu avô foi internado. tivera um ataque cardíaco e segundo os médicos o prognóstico não era favorável. mas tinha-me afeiçoado de mais a ele para o deixar morrer. lembrei-me então que o avô sempre gostara de poesia. de declamar os seus poetas preferidos. nessa altura eu soletrava as letras das palavras que ia aprendendo, daquelas que não se aprendiam na escola.
a maneira que encontrei para ajudar o meu avô foi então a de me sentar todos os dias ao seu lado. independentemente de quem lá estivesse eu pedia para me sentar à cabeceira da sua cama, abria um livro e declamava os seus poemas, os que me tinha lido ao longo dos anos; os que me tinha ensinado; os que eu sabia que ele sabia de cor e que amava. e não desisti. nos quase cinco meses em que esteve hospitalizado o meu avô recebeu a visita de cento e quarenta poetas: um por cada dia de internamento.
finalmente o avô recuperou. fez questão de sair pelo seu pé e eu fiz questão de sair com ele. à saída do hospital, antecipo os meus passos aos dele na passadeira comprida, e nos breves segundos antes de morrer, vejo a parte da frente de um autocarro vindo em zoom acelerado na minha direcção. os meus olhos binóculos invertidos com lentes gigantes. no fim desses breves segundos o meu avô olhou para mim e viu-me como há vinte cinco anos atrás tinha visto o filho, como fazendo parte de uma sanduíche de ferro e de pedra que o motorista do autocarro comeria quando acabasse o turno.
foi pelo menos isso o que pensei e que no fundo me apaziguou o espíríto: que tinha salvo o meu avô com poesia e que sempre que ele declamasse um poema no futuro, se lembraria de mim.

26 de janeiro de 2010

Conto: acidente

Os meus pais morreram há vinte e cinco anos num acidente de carro. ao contrário do que rezaram as notícias, o meu pai não se esbarrou contra uma parede. pelo que me contaram mais tarde, o culpado foi o motorista de uma camioneta que entre o mar e o carro, preferiu esmagar os meus pais: como se preparasse uma sanduíche de ferro e pedra para comer depois de acabar o turno. gostava do meu pai. era um gostar verdadeiro, quase humano. olhava para ele com orgulho quando se sentava junto à lareira da sala e abria o jornal. mas também gostava quando ele saía. e o meu pai saía muitas vezes. nessas alturas podia brincar à vontade. a sala era o meu reino privado. a minha mãe não perguntava ao meu pai aonde ele ia porque já sabia a resposta. concentrava-se apenas na banca da cozinha enquanto arrumava os pratos do jantar. pelo ralo via a relação de ambos a escoar-se junto com os restos de comida. e eu tentava segurar-me às mãos da minha mãe, para não me perder misturado com as ondas do mar e a espuma do detergente. quando o meu pai estava em casa e não se sentava à lareira, tinha por hábito bater na minha mãe. para ele era mesmo um hábito, uma rotina, como desfazer a barba ou comprar o jornal no quiosque logo pela manhã. comecei a aprender as alturas em que o meu pai não se ia sentar à lareira, pela maneira dele andar, pelo barulho dos seus sapatos no soalho. escondia-me então no quarto e tapava as orelhas. enrolava-me debaixo da cama para ter a certeza de que os gritos vinham do outro lado do mundo. e descansava o sono, já que os meus olhos não se conseguiam fechar enquanto a minha mãe não abrisse a porta do quarto.
na garagem da nossa antiga casa, continua encostado à parede um dos pára-choques que pertenceu ao último carro do meu pai. no chão, a mancha do líquido que verteu em cascata duas horas antes de eles saírem. vi-o cair, gota após gota após gota, e embora não soubesse que tubo tinha rebentado, não era isso que me impedia de sorrir. a sala seria para sempre o nosso reino privado. nesse dia a minha mãe ficou de me levar à escola. preferiu no entanto ir com o meu pai escolher uma prenda para o meu aniversário, quando a única prenda que eu queria era olhar para ela, e sorrir-lhe sem as mãos a taparem-me as orelhas.