28 de novembro de 2010

Conto: intervalo

Considero-me uma pessoa simples. nunca saí da minha cidade, mas sinto-me como se nunca a tivesse vivido. paradoxalmente, já viajei por todo o mundo, mas sem sair do sofá. naquele dia até estrelas vi. mas isso já passou. ou não passou, mas não quero falar nisso. do que eu gosto mesmo é de filmes. no sofá sou vítima desses filmes. nessas alturas as noites são mágicas. esforço-me até por não pensar em nada. limito-me a manter os olhos e os ouvidos abertos para absorver aquilo que me interessa. não penso em nada. não penso em ninguém. não penso em mim sequer. o que para um egocêntrico convicto é difícil de confessar. limito-me a vegetar, com os olhos colados num quadrado pequeno chamado televisor e em que homens ainda mais pequenos se movem. quando a luz vinda de fora me incomoda fecho as cortinas. sento-me. e então tudo pára. separo-me do mundo. mas os homens no quadrado pequeno também páram. permanecem estáticos durante os segundos seguintes. levanto a perna direita e a pausa extingue-se. os pequenos homens recebem autorização para se moverem de novo. com um gesto irritado atiro o comando do televisor contra a parede e rio-me sozinho. os homens no quadrado pequeno voltam a parar. é a sua memória que falha. a memória que nasce como instrumento da consciência mas que cai facilmente na armadilha do tempo. perdido o meu olhar na cortina, as duas personagens enfrentam-se dentro de uma sala. apanhando-me distraído, um dos homens dispara dois tiros na zona do coração do outro homem. silêncio. as balas ficaram a zumbir-me nos ouvidos. o televisor estava muito alto. mudo do video para a televisão e as personagens dão lugar a um intervalo publicitário. não tenho paciência para intervalos. nessas alturas deixo de escutar o mundo porque deixa de fazer sentido. e abro de novo as cortinas para perceber onde estou. o resto deixa de me interessar. como não me interessa a família. nem a religião. nem o futebol. olho para baixo. um copo de uísque numa mão e um copo de vodka na outra. mais tarde decido qual dos dois irei beber primeiro. sinto-me a melhor pessoa do mundo. e a mais inútil. os meus olhos fecham-se durante algum tempo. acordo com um barulho vindo da entrada da casa. a porta da sala abre-se. entra um homem. puxo da pistola escondida entre duas almofadas do sofá. disparo dois tiros na zona do coração do outro homem. ele cai no chão. inerte. com os olhos abertos virados para a janela. ligo o televisor. os anúncios não são assim tão aborrecidos ao final da tarde.

texto alterado a partir do conto com o mesmo nome publicado na Revista Ficcões Brasil em Junho.

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