24 de março de 2010

Conto: bolo de chocolate

A mulher tinha-lhe dito ao telefone que era ali que a encontraria. Entra. Amanhã, às seis da tarde em ponto, entra no bar, tal como combinámos. o bar era acolhedor e de tamanho reduzido. L. nunca lá tinha entrado, e tal como noutras ocasiões em que desconhecia o seu destino, antecipou-se na hora de chegada para não correr o risco de se atrasar. o relógio na parede do bar, com uma pintura abstracta a colorir o fundo, marcava dezassete horas e quarenta e cinco minutos. a mulher disse-lhe também que esperasse por ela sentado na mesa do canto e que pedisse uma carta. depois de se sentar num cadeirão antigo demasiadamente desconfortável para a magreza dos seus ossos, olhou em volta e um pequeno homem ergueu-se como que por magia por detrás do balcão: a cabeça era anormalmente grande para o resto do corpo e andava de uma maneira estranha, como se alguém o puxasse constantemente para trás. quando se abeirou da mesa onde L. se tinha sentado, acenou apenas com a cabeça e L. pediu a carta, esperando que o empregado soubesse o que queria ele dizer com aquilo. o empregado voltou a acenar com a cabeça num gesto mecânico, deu meia volta, esticou-se todo por cima do balcão dando um pequeno salto de canguru, vasculhou cegamente, regressou num passo arrastado e postou-se hirto durante breves segundos na frente de L. pendurou então o braço direito no ar, como que suspenso por uma mola numa corda de roupa invisível, e num gesto abusivamente solene entregou a L. um pequeno papel dobrado onde se podia ler em letra pequena mas bem legível: “Vou chegar ligeiramente atrasada. Pede o bolo de chocolate. Saboreia-o e a seguir pede outra carta.” embora o bolo de chocolate não fosse dos seus preferidos e nunca tivesse sido dado a jogos infantis, L. não quis contrariar a vontade da mulher e pediu o bolo. afinal, estavam ali para celebrar o aniversário de casamento. o empregado deu um passo atrás como se tivesse sido pisado e perguntou: Tem a certeza? Sim, tenho a certeza. Se pedi bolo de chocolate é porque quero bolo de chocolate. Mas tem mesmo a certeza? Temos também uma óptima tarte de maçã. Quero bolo de chocolate, afirmou peremptoriamente L. É o que aqui está escrito. Bem, se aí está escrito faço-lhe a vontade com todo o gosto, disse o empregado meio zangado e de nariz petulante. Em seguida e num movimento contínuo, deu uma nova meia volta de bailarina e dirigiu-se ao balcão. Voltou passados uns minutos com um prato simples mas bem decorado. Bom proveito. É da casa? Não, não. Esse veio de encomenda. se antes de L. pôr o garfo à boca, o empregado o tivesse ouvido confessar em voz alta que o bolo de chocolate não era um dos seus preferidos, e depois tivesse visto a forma como esfolou o prato até raspar no vidro, tomá-lo-ia por um mentiroso, mas o bolo devia estar realmente uma delícia. No fim da primeira surpresa L. emparelhou os talheres de um dos lados do prato e pediu a nova carta. ficou no entanto com a ideia que o empregado não o ouvira, mas isso talvez se devesse ao volume da música ambiente que pelo que parecia a Luís abanava de forma exagerada as paredes falsamente rústicas do bar. em poucos minutos o ambiente tinha-se tornado pesado, e embora L. não tivesse pedido nada para beber, parecia que tinha esvaziado o balcão, tal era a neblina que agora lhe cegava os olhos. no bar, apenas outro cliente que entrara depois de L. passados uns minutos. L. reconheceu-lhe as feições mas não conseguiu precisar de onde. o outro homem parecia ter optado pela tarte de maçã e olhava meio desconfiado para as pepitas de chocolate abandonadas no prato de L., como se o culpasse do pecado de ter ficado com a única fatia de bolo de chocolate no mundo. mas também ele parecia comer com gosto a tarte de maçã que lhe tinha calhado na roleta russa. L. fez então um novo esforço para endireitar as costas na cadeira de modo a ganhar novo folêgo e pediu em voz alta a segunda carta. o empregado voltou com uma expressão meio desfocada, ou então era Luís que via já tudo o que se mexia dessa perspectiva. L. abriu os olhos na direcção das mãos, e leu de forma pausada, aproximando e afastando o pedaço de papel, como se num dado momento as letras fossem gigantes e no momento seguinte tivessem um tamanho liliputiano. “Espero que tenhas gostado da tarte de maçã. Fi-la com todo o amor. Tem cuidado.”  a mulher de Luís entrou passados uns segundos, olhando para os dois lados do bar, abanando a cabeça, e levando as mãos à cara. agora sim tudo se quedava completamente desfocado e uma dor no peito, lenta e agonizante, enchia o último suspiro de L. antes de este reconhecer o homem que tinha ficado com a sua tarte de maçã, ver um pequeno pedaço de papel cair-lhe das mãos, perceber que tinha chegado fatalmente cedo ao encontro com a sua mulher e fechar pela última vez os olhos.

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