A minha mãe levantou-se e olhou na direcção da figura franzina: um enrugado de sentimentos misturados entre alegria e alívio. os flancos da alcofa cobertos pela brancura de um lenço a cheirar a desinfectante. os sentimentos enrugados conjugavam-se na forma de pequenos braços e pequenas pernas; esticavam-se numa tentativa frustrada de expulsar a preguiça. olhei à volta aproveitando os poucos momentos em que me era permitida a existência no quarto. o meu pai ordenou que me sentasse. disse-me para não incomodar, como se a minha respiração pudesse acordar todos os doentes em coma do hospital.
No hospital não se faz barulho, nem se brinca.
encolhi-me: vagueei ligeira pelo quarto procurando onde me sentar. finalmente uma cadeira branca tapada por uma cortina e perdida num canto do quarto. sentei-me e mirei os sapatos que não chegavam ao chão. os sapatos pretos e luzidios. não os largava, eram a minha prenda por ter feito a segunda comunhão.
Nos dias de hoje oferecem-se prendas até para que os meninos rezem, rezou a minha madrinha, no dia em que os experimentei no chão frio da igreja. os sapatos brilhavam quando o sol lhes batia. olhei de novo para cima colocando-me em escala: o meu pai uma árvore abanada pelo vento; a minha mãe estava mais calma. sorria para mim. devolvi-lhe o sorriso. no sorriso da minha mãe via o mar. por isso olhava muitas vezes para ela. porque gostavámos da praia. o meu pai não. não sei o que via nos olhos do meu pai, mas não era o mar. a enfermeira que nos fazia companhia saiu do quarto depois de acomodar novamente a minha mãe na cama. o meu pai continuava nervoso. fez festas na testa da minha irmã. ainda não tinham decidido o nome. ou não o tinham dito em voz alta. pegou em mim ao colo e inclinou-me sobre a alcofa.
A tua irmã é muito bonita. Tu também, mas a tua irmã é diferente. ouviu-se um barulho atrás de nós: o avô espreitava da porta e os meus pés pisavam de novo o chão do quarto para receber um beijo na testa. depois desse breve momento a alcofa uma ilha rodeada de beijos e abraços do avô, do pai e de quem aparecesse. o meu corpo um pequeno barco à deriva. sem bússola e sem norte.
não sei o que via nos olhos do meu pai mas não era o mar. o meu pai...a partir daquele dia, simplesmente deixou de ver os meus olhos.
Sem comentários:
Enviar um comentário