1 de fevereiro de 2010

Conto: acidente (II)

Depois do acidente fiquei ao cuidado do meu avô. a nossa relação até àquela data tinha sido uma relação convencional de avô e neto. só naquela altura lhe dei a importância que achei que ele nunca teria: seria um pai para mim. e porque todos acharam que tinha ficado muito afectado com o acidente fizeram com que mudasse: de escola, de casa, de amigos. mudei até a minha maneira de respirar. no que dizia respeito ao que eu pensava em relação a mim próprio tinha pensamentos contraditórios: saíra-me um fardo das costas, uma sombra que me fazia sumir todos os dias, mas de cada vez que olhava ao espelho levava um soco no estômago: aquele não era eu.
à medida que os anos foram passando, aquele cheiro a óleo a pingar no chão da garagem foi-se impregnando na minha pele: entranhou-se nos meus poros. aos poucos e poucos tornou-se parte do meu cheiro e da minha própria personalidade: nauseabunda e gasta. não raras vezes acordava a meio da noite todo transpirado: as paredes do meu quarto transformadas nas paredes da garagem, e era aí que eu via o pára-choques ainda encostado e a mancha de óleo no chão.
veio-me este pensamento à memória quando o meu avô foi internado. tivera um ataque cardíaco e segundo os médicos o prognóstico não era favorável. mas tinha-me afeiçoado de mais a ele para o deixar morrer. lembrei-me então que o avô sempre gostara de poesia. de declamar os seus poetas preferidos. nessa altura eu soletrava as letras das palavras que ia aprendendo, daquelas que não se aprendiam na escola.
a maneira que encontrei para ajudar o meu avô foi então a de me sentar todos os dias ao seu lado. independentemente de quem lá estivesse eu pedia para me sentar à cabeceira da sua cama, abria um livro e declamava os seus poemas, os que me tinha lido ao longo dos anos; os que me tinha ensinado; os que eu sabia que ele sabia de cor e que amava. e não desisti. nos quase cinco meses em que esteve hospitalizado o meu avô recebeu a visita de cento e quarenta poetas: um por cada dia de internamento.
finalmente o avô recuperou. fez questão de sair pelo seu pé e eu fiz questão de sair com ele. à saída do hospital, antecipo os meus passos aos dele na passadeira comprida, e nos breves segundos antes de morrer, vejo a parte da frente de um autocarro vindo em zoom acelerado na minha direcção. os meus olhos binóculos invertidos com lentes gigantes. no fim desses breves segundos o meu avô olhou para mim e viu-me como há vinte cinco anos atrás tinha visto o filho, como fazendo parte de uma sanduíche de ferro e de pedra que o motorista do autocarro comeria quando acabasse o turno.
foi pelo menos isso o que pensei e que no fundo me apaziguou o espíríto: que tinha salvo o meu avô com poesia e que sempre que ele declamasse um poema no futuro, se lembraria de mim.

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