18 de fevereiro de 2010

Conto: telhado com clarabóias

Há dois dias atrás podia afirmar que vivia numa casa com vista para o mar. uma casa normal: com portas, janelas, um telhado com clarabóias para deixar entrar mais luz. no quarto, afastada uns bons três metros da cama, a secretária de mogno onde estavam pousados os contos inacabados para enviar ao meu novo editor. na sala, a mesa de bilhar onde jogava umas partidas quando o meu pai vinha de visita. a semana passada retribuí-lhe a visita depois de muita insistência. talvez isso me tenha salvo a vida. é comovente pensar como um pai pode tentar salvar um filho mesmo sabendo estar condenado ao fracasso. ao fundo da sala ficava a lareira, onde lia à noite acompanhado de um Porto. por cima da lareira a última fotografia que tirámos juntos, tu e eu, exactamente em frente a esta casa de que agora te falo. tenho consciência do ridículo de te descrever a casa pela qual nos apaixonámos na nossa primeira visita à ilha, a casa que tu própria decoraste e à qual deste vida própria. há dois dias atrás, para além de casa, ainda tinha vida, porque ali habitavam todas as memórias da nossa existência em comum. ali guardava o que me prendia a esta ilha em que se transformou a sociabilização da minha alma depois de... as restantes pessoas simples gotas de água do oceano, irrelevantes para terem significado mas que nos conseguiram separar. irónico o mesmo elemento que te afastou de mim levar agora as únicas lembranças físicas que me restavam: as mil e uma cartas, as conchas com o nosso nome escrito e pintadas à mão com uma inocência infantil, a fotografia das nossas pegadas na areia levadas no segundo seguinte pelo mar. da nossa casa apenas resta o telhado, ancorado numa rocha, virado com a barriga para cima numa posição submissa perante o destino, com as entranhas à mostra e os vidros das clarabóias todos quebrados.
exactamente como eu.

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