16 de fevereiro de 2010

Conto: aquele cão que

Sempre gostei de animais, sobretudo de cães. todas as relações que tive com os da minha espécie ficaram aquém das expectativas: ou confiei de mais e depois saí desiludido com o resultado, ou confiaram de mais em mim e eu não era bem aquilo de que estavam à espera. com os cães nunca tive esse problema: comem, dormem, precisam de ir à rua uma ou duas vezes por dia e andam atrás da cauda quando lhes pára o relógio. do último cão que me ficou na memória não lhe conheci os hábitos em detalhe: não sei se comia muito, se dormia muito, se ía muitas vezes à rua. mas parava-lhe o relógio. há cerca de dois meses, zanguei-me com o televisor e atirei-lhe com o comando: nenhum dos cem canais do cabo me agradava. peguei num livro. tinha comprado na semana anterior Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar de Lobo Antunes. quando me sentei a ler ouvi um latido, e depois outro e ainda outro. não parava. o cão ladrava e no fim acabava com um pequeno uivo, quase a medo, mas que era alto o suficiente para o ouvir no andar de cima. esperei cinco, dez minutos mas não havia maneira de o cão se calar. não tinha avançado mais do que duas páginas e precisava de me concentrar: comecei a ler em voz alta, de modo a que o cão me ouvisse tanto como eu o ouvia a ele. parava em cada pausa para recuperar o fôlego e lia cada frase cada vez mais alto como se estivesse perante uma sala cheia de ouvintes. por entre as minhas palavras deixei de ouvir o cão. calei-me também. o cão voltou a ladrar e eu voltei à minha leitura em voz alta, parando apenas passado meia hora quando a minha garganta se assemelhava a um rio desértico no pico do Verão. entretanto ouvi o barulho de uma porta a fechar. a dona do cão, com quem me cruzara uma ou duas vezes se tanto, tinha chegado. nas semanas seguintes o ritual repetiu-se: a dona saía, o cão ladrava: eu pegava no livro e lia em voz alta: o cão calava-se e ouvia. ficávamos nisto até a dona chegar. há cerca de quinze dias deixei de o ouvir. senti a dona sair e fiquei em suspenso. irritou-me o facto de não o ouvir ladrar. que direito tinha ele afinal para não ladrar quando a dona saía? deixei passar uma, duas semanas, até que hoje ganhei coragem para falar com a dona. ouvi a chave da porta do seu apartamento a ganhar vida e um estrondo abafado no andar de baixo. desci apressadamente e fiz-lhe notar a minha presença com uma tosse que acordou as aranhas no corrimão das escadas. ela virou-se e encarou-me. perguntei-lhe pelo cão e expliquei-lhe o que se passava: sempre que ela saía o cão ladrava, mas quando lia em voz alta Lobo Antunes o cão calava-se. ela olhou para mim como olharia um psiquiatra pronto a internar-me e recomeçou a descer as escadas. falei de novo, desta vez num tom de voz mais alto: Percebeu o que eu disse? Os livros do António Lobo Antunes... ela interrompeu-me: Oh meu filho, qual lobo, qual raposa. Eu gosto é de novela. E não sei se o meu cão gostava assim tanto desse lobo. Há duas semanas deu-lhe um demónio no corpo e mandou-se da varanda quando saí para tomar café. Passe bem. dito isto virou-me as costas, com o rabo a gingar pelas escadas abaixo. regressei ao apartamento e fechei a porta. peguei no livro e sentei-me a ler no sofá, em silêncio, e a pensar que não seria má ideia retomar as minhas relações com outros humanos: ao menos sei com o que posso contar.

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