21 de março de 2010

Conto: pausa

Conheci-a numa paragem de autocarro. conhecer é um modo de dizer já que naquele dia trocámos apenas duas palavras cada um. Bom dia. Bom dia. respondeu ao meu cumprimento apenas para ser gentil, porque pela sua cara o dia não lhe estava a correr bem. era uma mulher bonita mas a gabardine tapava a maior parte do seu corpo. apenas distinguia as suas pernas da canela para baixo e o início dos pés entalados nuns sapatos pretos. estava suficientemente perto de mim para lhe sentir o hálito de tabaco. uns minutos antes tinha atirado um cigarro quase acabado de acender para a sarjeta que absorvia ainda lentamente a muita chuva que tinha caído uma meia hora antes. o seu telemóvel tocou. atendeu-o como se estivesse sozinha na paragem: Sim, sou eu. Quem mais querias que fosse? Ela? pausa. Olha, vai-te foder mais as tuas desculpas. É sempre a mesma lengalenga. No fundo vocês homens são todos iguais. Quando estão com outras mulheres e sempre que podem só pensam com o que têm no meio das pernas. pausa. E depois do caldo entornado vêm com as falinhas mansas: “Juro que foi a primeira” e “Nunca te quis magoar”. E depois, quando já não o podem negar: “Querida, prometo que foi a última vez.” quase pausa. Cala-te que agora sou eu que falo e vais-me ouvir até ao final. Não me interessa o que é que a minha mãe diz. Sou adulta e ela já não manda em mim há muitos anos e não a chames à baila só porque ela sempre gostou de ti. nova pausa. os seus cabelos abanavam-se de fúria mais do que pelo vento e os pequenos raios de sol que conseguiam vencer as nuvens amaciavam-lhe a pele de contornos suaves. o tom da sua voz era no entanto cada vez menos macio e cada vez mais alto e a minha curiosidade pela conversa e pelo seu cheiro ia-me aproximando do seu corpo como um íman de coscuvilhice da vida alheia. a pausa foi curta e ela voltou à carga para o que parecia ser a última estocada no seu oponente debilitado e moribundo. Já te disse ontem que tens até ao final da semana. Não quero saber que não tenhas para onde ir. Por mim podes ir morar para debaixo da ponte, desde que não te ponha mais a vista em cima. pausa. Olha, estou farta disto. Vai-te foder mais a tua vidinha. desligou o telemóvel e falou em voz alta para ninguém em particular mas sabendo que eu a ouvia. Os homens são mesmo uns filhos da puta. quando olhou para mim no fim da frase e sorriu, sabia que me tinha chamado a atenção, mas também sabia que se ficássemos juntos não a traíria. era muito complicada e um bocado chata de ouvir. para além de que sempre fui muito cioso da minha privacidade para ver a minha vida, mesmo não o sabendo, discutida numa paragem de autocarro.

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