7 de fevereiro de 2010

Conto: serpente e gazela

Encosto-me no sofá com a cabeça sonolenta e as mãos unidas entre as pernas. o meu corpo um feto por nascer. uma taça de gelatina esquecida no fim do casamento, tremendo em cima de uma bandeja. Sossega. Sossega que te faço carinhos na cara, disseste tu de manhã, depois de me largares o pescoço. ironicamente ou não, nunca ouves o que te digo. não respondes às minhas perguntas. não ouves as minhas respostas. o nosso filho, a brincar em frente à lareira, com a coroa em papel que trouxe da escola. os joelhos esfolados numa alegria desconfortável ignorando também as tuas respostas e as minhas perguntas. assomo à janela. o frio passa pelas frestas na direcção da minha cara e aninha-se a um canto da sala. um arrepio trilha-me a espinha. a mangueira da rega serpenteia amarela pelo jardim. finalmente recolhe-se e enrola-se no apoio aparafusado na parede, como se esmagasse uma gazela indefesa. na cozinha a comida, desajeitada na espera, esfria no prato. entras. sinto a tua respiração quando fechas a porta e penduras o casaco no bengaleiro: os teus braços, as tuas mãos pairam no ar num sussurro doentio. o último quadro que pintei encostado na arca aos pés da cama: o teu corpo no quintal com uma cruz dissimulada no último centímetro de terra. segues directo para o quarto, sem comeres, sem tomares banho, sem dares um beijo de boa noite ao teu filho. o filme passa em fastforward: chamas-me. entro e deito-me na cama. abro as pernas e entras dentro de mim como um pêndulo de relógio: tic-tac tic-tac tic-tac. mecânica. pura mecânica. a explosão da mina no meio do mato. o teu peso a afundar-se na cama. uma lágrima nos lençóis. a casa toda por arrumar. a nossa vida por arrumar. a garrafa de vinho na cozinha. os talheres desarrumados por cima dos pratos.o bengaleiro caído no meio do corredor. sais. chego-me de novo à janela. esfrego as mãos e sinto o metal. tento atirar o anel pela janela, mas uma barreira de vidro impede-me. o aro de ouro roda desamparado por entre as pernas. deito-me novamente no sofá: o meu corpo uma taça de gelatina que esqueceste no dia do nosso casamento, tremendo em cima de uma bandeja. no topo da gelatina um desenho moldado pelos anos: a serpente esmagando a gazela até esta deixar de respirar.

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