26 de janeiro de 2011

um poema a Dahlia

abre a janela e deixa o chão bater-te na cabeça.
pum pum pum
livra, que já não podes ser livre em paz.

queres ter uma dor de cabeça?
porque não te deixam ter uma dor de cabeça?
deixa que a tua cabeça explôda.
mas sê livre.
não queres a merda dos comprimidos?
não queres prestar contas?
não queres fazer contas?
não faças. manda tudo à merda.
os comprimidos, as contas, os números,
as contas bancárias e a felicidade dos outros.

liberta-te desse jugo.
do jugo que te julga.
e que se julga.

teme. sim, teme por ti, e teme pelos outros.
a vida não te sorri: o Sol por vezes não aparece:
esconde-se por detrás das nuvens.

mas quando morreres, ele ainda cá estará,
e tu serás pó e uma lembrança daquilo que deste ao mundo.
para trás, deixarás os números, as contas,
os comprimidos e as dores de cabeça.
e serás livre.

a vida não te sorri:o Sol por vezes não aparece:
esconde-se por detrás das nuvens,
ou então é noite e tu não reparas.

25 de janeiro de 2011

João Habitualmente, A Criatura

Era uma criatura oca
vazia por fora
vazia por dentro
nem alta nem baixa
nem nova nem velha
de feitio brutal e forma barroca

Era tão oca
que nem o vento a enchia
nem a chuva a molhava
e o vento soprava e a chuva chovia
nada disso a movia

oca da cabeça aos pés
por cima e por baixo
de frente e de esguelha
oca de lés-a-lés
castanha cinzenta
e cinzenta castanha
nem o raio a tolhia
nem o sol a suava

Era uma criatura que se auto-devorava

comia a boca
com a sua própria boca
dava urros
aos seus próprios murros
deglutia as entranhas
e outras coisas tamanhas

era oca e bacoca
dum cinza metal
não tinha cabeça
porque a tinha no estômago
e tinha tijolos no lugar dos miolos
era oca e bestial
comendo com a própria boca
mesmo a parte mais oca
a oca vazia
mesmo essa comia
  
Certa bela manhã
saciada de si
saltou para as rua espalhando terrores
rompeu a roncar
largando vapores
comeu três poetas
e meia dúzia de artistas
comeu os livreiros e os alfarrabistas
pintou a manta e matou três pintores

Era uma criatura oca
tão oca e vazia
que todos olhavam e ninguém a via
tanto cirandou
que fez o que quis
roubou a princesa
comprou um polícia
e casou c'o juiz

Um dia
já de certa idade
subiu ao poder e comeu a cidade

in De minha máquina com teu corpo, Cadernos do Campo Alegre

21 de janeiro de 2011

# problema informático #

se forem ao google maps, pesquisarem por Portugal, e depois clicarem no botão do refresh e acharem que está tudo igual, não se preocupem que não é dos comprimidos: passa-se o mesmo na vida real.
e escusam de tentar mais que uma vez. o resultado é sempre o mesmo. se perguntarem ao Governo o mais provável é que se desculpem com um problema informático.

20 de janeiro de 2011

José e Pilar, ou apenas José

Pode parecer cruel escrever isto, mas a imagem mais forte que me ficou do filme "José e Pilar", de Miguel Gonçalves Mendes, foi a de Saramago como um homem sozinho, tanto quanto um escritor pode ser um homem sozinho mesmo quando partilha a sua habitabilidade interior com os outros. Saramago viveu claramente fora do seu tempo. viveu desfasado daquilo que seria normal, quer na sua vida íntima quer na publicação dos livros. associado, por vontade própria, e desde sempre, ao comunismo, ateísmo e anticlericalismo, a sua grandiosa Obra sobrevive de forma isolada a esses "pequenos" temas e vive muito melhor até sem isso. Saramago ele próprio foi muito mais do que isso. as suas obras, independentemente da atribuição ou não do Nobel, ainda serão faladas e estudadas daqui a cem anos, e esse é o maior legado de Saramago para o mundo da literatura. Saramago, português e adoptado por terras espanholas, era acima de tudo um escritor universal.

Livros 2010 pelos leitores da LER

Da votação dos leitores da LER relativamente aos melhores livros de 2010, apraz registar duas notas, bem positivas por sinal: seis dos autores são portugueses, e quatro deles são sub-40 (ou eram em 2010); dos estrangeiros, dois deles foram laureados com o nobel da literatura na última década. fico mais descansado.

Noites do Rivoli

Não deixa de ter a sua ironia o facto de ser a empresa do vereador da cultura de v.n.gaia a iniciar a programação de um dos equipamentos culturais mais simbólicos do porto.



19 de janeiro de 2011

Maria do Rosário Pedreira e os candidatos a autores

Num post publicado há uns dias Maria do Rosário Pedreira escreve a determinada altura: "Na semana passada, li, por exemplo, umas trinta páginas de um livro que, embora bem-intencionado, padecia de uma estrutura tão complexa que exigiria do seu autor grande experiência de escrita para lidar com ela e, por se tratar de um principiante, não funcionava. E, além disso, estava o texto pejado de erros de ortografia – coisa que dificilmente se perdoa a quem quer ser considerado escritor. Na minha resposta-comentário, fui (creio) demasiado branda para o que é costume, não deixando, mesmo assim, de referir ao autor de tais páginas a quantidade de erros e a necessidade de ler mais para os corrigir em próximas aventuras literárias. Já estou habituada a reacções secas, indispostas e até visivelmente irritadas – e, ainda que não viva bem com isso, talvez pela quantidade de vezes que acontece construí uma espécie de escudo protector; mas, desta feita, a resposta foi completamente inesperada: o potencial escritor agradecia os comentários críticos, mas explicava que eu estava a ser demasiado exigente, pois não se podia pedir a um autor que estivesse ao mesmo tempo atento ao desenvolvimento da história e a coisas tão comezinhas como a ortografia... E esta, hã?"
Se todos os editores se dessem ao trabalho de responder de forma objectiva ao que se lhes é enviado a literatura portuguesa estaria menos mal. Não costumo enviar orginais para publicação, mas a pior resposta que um editor pode dar a quem envia um manuscrito original é o de que não se adequa ao catálogo. Porque se percebe imediatamente que na maior parte dos casos é copy-paste de outras respostas e ainda por cima é falso. Os editores não existem para serem simpáticos. Existem para dar respostas concretas e directas e decidirem o que se publica e o que não se publica, servindo como primeiro filtro. Não presta, não presta. Ponto final. Para virem com paninhos quentes existe a família e os amigos. O editor, tendo também uma responsabilidade bem determinada e definida na evolução da literatura, devia perceber que a tal resposta referida em cima (do catálogo) não ajuda em nada a essa evolução. 

18 de janeiro de 2011

# do sucesso #

a linha que separa o sucesso do insucesso é muito estreita, mas o problema não é o facto de os extremos dessa linha estarem muito afastados e apontarem em sentidos opostos. o principal problema de muitas pessoas é de nem saberem onde está a linha.

Bertrand Russel e o bule de chá

"Muitos indivíduos ortodoxos dão a entender que é papel dos cépticos refutarem os dogmas apresentados – em vez dos dogmáticos terem de prová-los. Essa ideia, obviamente, é um erro. Da minha parte, poderia sugerir que entre a Terra e Marte há um pote de chá de porcelana girando em torno do Sol numa órbita elíptica, e ninguém seria capaz de refutar a minha asserção, tendo em vista que teria o cuidado de acrescentar que o pote de chá é pequeno de mais para ser observado mesmo pelos nossos telescópios mais poderosos. Mas se afirmasse que, devido à minha asserção não poder ser refutada, seria uma presunção intolerável da razão humana duvidar dela, com razão pensariam que estou falando uma tolice. Entretanto, se a existência de tal pote de chá fosse afirmada em livros antigos, ensinada como a verdade sagrada todo os domingos e instilada nas mentes das crianças na escola, a hesitação de crer na sua existência seria sinal de excentricidade e levaria o céptico às atenções de um psiquiatra, numa época esclarecida, ou às atenções de um inquisidor, numa época passada."

6 de janeiro de 2011

Nuno Moura, Os livros de Hélice Fronteira, Regina Neri, Vasquinho Dasse, Ivo Longomel, Adraar Bous, Robes Rosa, Estevão Corte, Alexandre Singleton

Um livro de poesia dividido em vários capítulos, com correspondente número de personagens/pseudónimos: Hélice Fronteira "gosto das mesma palavras que tu"; Regina Neri "o  monstro do entrepernas"; Vasquinho Dasse "histórias muito pequenas e muito más"; Ivo Longomel "piudefule"; Adraar Bous "beauty contest talcum powder"; Robes Rosa "teatro para cães"; Estevão Corte "estudos sobre a sexta-feira 13"; Alexandre Singleton "relatório & contas". Pelos títulos dos vários "livros" que constituem este livro maior, podemos ver o toque de humor e ironia com que Nuno Moura discorre sobre variados assuntos. Predominando nalgumas passagens um estilo mais descritivo, noutras mais surreal, resulta no conjunto como uma obra urbana, contemporânea e musicalmente poética. 
Com primeira edição em 2000 pela Mariposa Azual (não sei se teve re-edição), foi resultado de uma bolsa que o autor confessa na contracapa que gostaria de voltar a receber: "É que passado três anos da 1ª Bolsa, já se pode concorrer outra vez. Mesmo sem ler o livro, o que é que você acha melhor?"
neste link podem ler um dos poemas incluído no livro, num estilo urbano-crítico-melódico, à semelhança das suas performances poéticas no duo Copo, onde faz parceria com Paulo Condessa.

4 de janeiro de 2011

Mario Vargas Llosa, O Sonho do Celta

Fazendo uso das palavras do comité do Nobel da Literatura, que atribuiu o prémio a Mario Vargas Llosa pela sua "cartografia de estruturas de poder e pelas suas imagens vigorosas sobre a resistência, revolta e derrota individual", podemos dizer que este seu último livro será o melhor exemplo dessa descrição. Escrever “O Sonho do Celta” (Quetzal, 2010), lançado na mesma altura em que se soube que tinha ganho o Nobel, foi segundo o próprio, uma grande empresa. Ficcionar a vida de uma personagem riquíssima da história de finais de século XIX e início do século XX, mas esquecida pelo tempo, poderia ter tornado o romance de Vargas Llosa demasiado histórico com tudo o que isso tem de mau – nomeadamente com factos em excesso - mas o autor soube dosear a informação a disponibilizar ao leitor e conseguiu colocar-se de facto na pele da personagem (embora com uma narrativa na terceira pessoa) para relatar a vivência de Roger Casement, “um patriota irlandês”, que percebeu o que queria para a sua pátria depois de sentir o que outros viviam noutros locais do mundo.
O sonho da juventude de Roger Casement, e que fez com que partisse para África, baseava-se nos três C’s: “civilização, cristianismo e comércio livre”. Cedo percebeu no entanto que não era isso propriamente que acontecia por terras africanas, com a balança sempre a pender para a parte do comércio e não no sentido mais justo do termo. Roger Casement ficou revoltado com a perfídia do colonialismo. Não apenas pelo facto de os colonos “invadirem” um país, e tornarem os indígenas praticamente escravos e autómatos. Foi também por os colonos dizerem a esses indígenas que estavam a fazer uma coisa completamente diferente e que era para o seu bem. Roger discutiu isso com várias pessoas com quem se cruzou na sua estadia. Para contrariar todos aqueles que se aproveitavam do desconhecimento e da bondade dos indígenas, havia quem lhe dissesse que tinha ido para lá “a fim de prestar ajuda aos nativos, “que tanto precisam, nesta terra onde Belzebu parecia estar a ganhar a batalha ao Senhor””p.93 (a referência religiosa estará presente ao longo de todo o romance). O próprio Casement constatou a determinada altura - depois de assistir à violência a que eram sujeitos os indígenas - que “se alguma coisa [tinha aprendido] no Congo, é que [não havia] pior fera sanguinária que o ser humano. p.94 É-nos pincelada pelo autor uma vasta galeria de personagens, sobretudo europeus, alterados por África. Há uma discussão constante sobre se são os europeus que em África ficam maus e agressivos, ou se é o território que desperta neles o que têm de pior. Depois de fazer estas constatações ao fim de poucos anos, ele decide lutar contra elas, não com armas, mas com o que sabia fazer melhor: relatar as atrocidades e denunciá-las ao mundo.
A sua estadia em África forma apenas a primeira parte do romance. Seguiram-se depois a Amazónia peruana para onde é enviado pelo governo britânico, e o regresso à sua Irlanda, onde vai viver os maiores dilemas de espírito à medida que a sua saúde se deteriora.

excerto
Se não tivesse feito nos seus cadernos um registo tão minucioso de datas, lugares, testemunhos e observações, na sua memória tudo aquilo andaria em revoada e misturado. Fechava os olhos e, num torvelinho vertiginoso, apareciam e reapareciam aqueles corpos de ébano com cicatrizes avermelhadas como viborazinhas a fender-lhe as costas, as nádegas e as pernas, os cotos dos braços cerceados das crianças e dos velhos, as caras macilentas e cadavéricas, de onde parecia terem extraído a vida, a gordura, os músculos, ficando nelas apenas a pele, a caveira e aquela expressão ou esgar fixo que indicava, mais que a dor, a infinita estupefacção por aquilo que sofriam.p.90

2 de janeiro de 2011

David Mourão-Ferreira, Gaivotas em Terra

“Gaivotas em Terra”, livro vencedor do Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa em 1959, é o conjunto de quatro novelas (“Tal e Qual o Que Era”, “E aos Costumes Disse Nada”, “Casal Venha Lisboa” e “Agora o Fado Corrido”), escritas nos anos cinquenta por David Mourão-Ferreira (1927-1996), poeta, crítico, novelista e contista, ensaísta e dramaturgo, para além de ter assumido alguns cargos no governo e em diversos institutos e imprensa nacional, e que marcou a sua escrita por um humor mordaz e uma ironia certeira, sendo estas novelas disso um bom exemplo.
Os textos - que como sugerido por vários críticos ao longo das décadas seguintes e assumido também pelo próprio autor, se poderia ter constituído como um romance ou pelo menos um seu esboço, mas que no fim se quedaram como novelas autónomas - têm em comum vários aspectos e é isso mesmo que lhe dá a unidade referida em cima: a personagem central é uma mulher ou é o tema central da relação do homem com a mulher; são novelas urbanas cujo pano de fundo é Lisboa numa celebração e homenagem à cidade “menina e moça” retratada no poema de Ary dos Santos, aos seus recantos, hábitos, cores e cheiros de vários bairros; e são escritos numa linguagem própria usando por vezes as personagens alguns termos chocarreiros e outros uma linguagem de certa burguesia que ainda sobrevive em determinados centros urbanos.
As novelas foram escritas, como se escreveu em cima, nos anos cinquenta, num tempo em que não se vivia tão depressa, mas que mantêm em certos traços a mesma actualidade e uma frescura por vezes surpreendente. No fim de contas, o país não pode ter mudado assim tanto em sessenta anos. Para o bem, para o mal, e no que aos brandos costumes diz respeito.
Li pela primeira vez este livro (Editorial Presença, 9ªedição, 1998) há pouco mais de dez anos e voltei a relê-lo agora no final deste ano que passou. Aconselho que continue a ser lido, especialmente pelas novas gerações a quem os livros portugueses do século XX pouco vão dizendo, a não ser que estejam inscritos num qualquer programa de ensino.