25 de janeiro de 2011

João Habitualmente, A Criatura

Era uma criatura oca
vazia por fora
vazia por dentro
nem alta nem baixa
nem nova nem velha
de feitio brutal e forma barroca

Era tão oca
que nem o vento a enchia
nem a chuva a molhava
e o vento soprava e a chuva chovia
nada disso a movia

oca da cabeça aos pés
por cima e por baixo
de frente e de esguelha
oca de lés-a-lés
castanha cinzenta
e cinzenta castanha
nem o raio a tolhia
nem o sol a suava

Era uma criatura que se auto-devorava

comia a boca
com a sua própria boca
dava urros
aos seus próprios murros
deglutia as entranhas
e outras coisas tamanhas

era oca e bacoca
dum cinza metal
não tinha cabeça
porque a tinha no estômago
e tinha tijolos no lugar dos miolos
era oca e bestial
comendo com a própria boca
mesmo a parte mais oca
a oca vazia
mesmo essa comia
  
Certa bela manhã
saciada de si
saltou para as rua espalhando terrores
rompeu a roncar
largando vapores
comeu três poetas
e meia dúzia de artistas
comeu os livreiros e os alfarrabistas
pintou a manta e matou três pintores

Era uma criatura oca
tão oca e vazia
que todos olhavam e ninguém a via
tanto cirandou
que fez o que quis
roubou a princesa
comprou um polícia
e casou c'o juiz

Um dia
já de certa idade
subiu ao poder e comeu a cidade

in De minha máquina com teu corpo, Cadernos do Campo Alegre

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