4 de janeiro de 2011

Mario Vargas Llosa, O Sonho do Celta

Fazendo uso das palavras do comité do Nobel da Literatura, que atribuiu o prémio a Mario Vargas Llosa pela sua "cartografia de estruturas de poder e pelas suas imagens vigorosas sobre a resistência, revolta e derrota individual", podemos dizer que este seu último livro será o melhor exemplo dessa descrição. Escrever “O Sonho do Celta” (Quetzal, 2010), lançado na mesma altura em que se soube que tinha ganho o Nobel, foi segundo o próprio, uma grande empresa. Ficcionar a vida de uma personagem riquíssima da história de finais de século XIX e início do século XX, mas esquecida pelo tempo, poderia ter tornado o romance de Vargas Llosa demasiado histórico com tudo o que isso tem de mau – nomeadamente com factos em excesso - mas o autor soube dosear a informação a disponibilizar ao leitor e conseguiu colocar-se de facto na pele da personagem (embora com uma narrativa na terceira pessoa) para relatar a vivência de Roger Casement, “um patriota irlandês”, que percebeu o que queria para a sua pátria depois de sentir o que outros viviam noutros locais do mundo.
O sonho da juventude de Roger Casement, e que fez com que partisse para África, baseava-se nos três C’s: “civilização, cristianismo e comércio livre”. Cedo percebeu no entanto que não era isso propriamente que acontecia por terras africanas, com a balança sempre a pender para a parte do comércio e não no sentido mais justo do termo. Roger Casement ficou revoltado com a perfídia do colonialismo. Não apenas pelo facto de os colonos “invadirem” um país, e tornarem os indígenas praticamente escravos e autómatos. Foi também por os colonos dizerem a esses indígenas que estavam a fazer uma coisa completamente diferente e que era para o seu bem. Roger discutiu isso com várias pessoas com quem se cruzou na sua estadia. Para contrariar todos aqueles que se aproveitavam do desconhecimento e da bondade dos indígenas, havia quem lhe dissesse que tinha ido para lá “a fim de prestar ajuda aos nativos, “que tanto precisam, nesta terra onde Belzebu parecia estar a ganhar a batalha ao Senhor””p.93 (a referência religiosa estará presente ao longo de todo o romance). O próprio Casement constatou a determinada altura - depois de assistir à violência a que eram sujeitos os indígenas - que “se alguma coisa [tinha aprendido] no Congo, é que [não havia] pior fera sanguinária que o ser humano. p.94 É-nos pincelada pelo autor uma vasta galeria de personagens, sobretudo europeus, alterados por África. Há uma discussão constante sobre se são os europeus que em África ficam maus e agressivos, ou se é o território que desperta neles o que têm de pior. Depois de fazer estas constatações ao fim de poucos anos, ele decide lutar contra elas, não com armas, mas com o que sabia fazer melhor: relatar as atrocidades e denunciá-las ao mundo.
A sua estadia em África forma apenas a primeira parte do romance. Seguiram-se depois a Amazónia peruana para onde é enviado pelo governo britânico, e o regresso à sua Irlanda, onde vai viver os maiores dilemas de espírito à medida que a sua saúde se deteriora.

excerto
Se não tivesse feito nos seus cadernos um registo tão minucioso de datas, lugares, testemunhos e observações, na sua memória tudo aquilo andaria em revoada e misturado. Fechava os olhos e, num torvelinho vertiginoso, apareciam e reapareciam aqueles corpos de ébano com cicatrizes avermelhadas como viborazinhas a fender-lhe as costas, as nádegas e as pernas, os cotos dos braços cerceados das crianças e dos velhos, as caras macilentas e cadavéricas, de onde parecia terem extraído a vida, a gordura, os músculos, ficando nelas apenas a pele, a caveira e aquela expressão ou esgar fixo que indicava, mais que a dor, a infinita estupefacção por aquilo que sofriam.p.90

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