30 de dezembro de 2010

Jorge Luis Borges, Ficções

“Ficções”, obra considerada como uma das grandes impulsionadoras da literatura sul-americana do século XX, publicado originalmente em 1944 (reimpresso pela Teorema em 2009), reúne uma série de contos que têm como temas predominantes, aqueles que ao longo da sua carreira marcaram Jorge Luis Borges como escritor: a memória, a émula do tempo, os labirintos físicos e mentais, os labirintos do pensamento, os espelhos e simetrias; a análise de livros eles próprios ficcionados ou como explica o autor no prólogo a “escrita de notas sobre livros imaginários”; a tautologia da própria literatura e a arte da dialéctica, mas consigo próprio, com a sua consciência e com um mundo muito próprio que se foi aprofundando com a cegueira do escritor argentino; um dos contos mais conhecidos, “A biblioteca de Babel”, narra a criação de uma biblioteca feita por um qualquer demiurgo onde existiria a totalidade de todos os livros potencialmente já escritos ou por escrever; e noutros contos aborda-se o estudo psicológico das personagens, especialmente na segunda parte do livro, em que Borges analisa nos diversos textos a dicotomia entre a coragem e a cobardia de se ter de tomar uma decisão, de seguir inevitavelmente um dos caminhos no “jardim dos caminhos que se bifurcam” explanado no conto que finaliza a primeira parte. 
O livro divide-se em duas parte. Da primeira, "O jardim dos caminhos que se bifurcam" fazem parte os contos "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius", "Pierre Menard, autor de Quixote", "As ruínas circulares", "A lotaria em Babilónia", "Análise da obra de Herbert Quain", "A biblioteca de Babel" e "O jardim dos caminhos que se bifurcam". A segunda parte, "Artifícios" é constituída pelos contos "Funes ou a memória", "A forma da espada", "Tema do traidor e do herói", "A morte e a bússola", "O milagre secreto", "Três versões de Judas", "O fim", "A seita da Fénix" e "Sul".

excerto:
“argumentei (...) que a minha cobarde felicidade provava que eu era homem capaz de levar a aventura a bom termo. Desta fraqueza tirei forças que não me abandonaram. Prevejo que o homem se há-de resignar dia a dia a empresas cada vez mais atrozes; em breve não haverá senão guerreiros e bandidos; dou-lhes este conselho: O executor de uma empresa atroz tem de imaginar que já a cumpriu, tem de se impor um futuro que seja irrevogável como o passado. Assim procedi eu, enquanto os meus olhos de homem já morto registavam o fluir daquele dia que era talvez o último, e a noite a espalhar-se.” p. 83

28 de dezembro de 2010

Gonçalo M. Tavares, Matteo perdeu o emprego

“Matteo perdeu o emprego” (Porto Editora, 2010) é sobre um homem: Matteo, mas também sobre todas as outras personagens que nos conduzem a Matteo, de forma alfabética e com pequenas referências visuais (como é referido numa nota inicial “os nomes das personagens têm origem num trabalho de Daniel Blaufuks”). O livro pode ser lido como o conjunto de pequenas narrativas, que correspondem a capítulos, e que se podem constituir como textos individuais, mas cujo objectivo é levar-nos até ao texto final de Matteo. Os “ganchos” no final de cada capítulo, que normalmente são escondidos de forma laboriosa pelo autor de um livro, são aqui acentuados por Gonçalo M. Tavares de forma propositada. O autor quer que nos dirijamos para um determinado sentido ou direcção, mas vai deixando pequenas pistas para que o leitor se interrogue do porquê de irmos numa direcção e não noutra qualquer. Ao contrário da rotunda, um dos símbolos deste livro, o autor coloca-nos num cruzamento, em que podemos virar à direita, à esquerda ou seguir em frente, mas com a condição de não voltarmos para trás.
Tão importante como a narrativa global em si, é o próprio posfácio, em que o autor reflecte sobre o que escreveu. Aqui se nota o seu raciocínio célere (que poderá explicar parte da sua prolificidade) mas ponderado, quase como que pesado e acertado à grama numa balança digital. A capacidade de racionalizar os temas que definem uma sociedade, especialmente as do século XX, associada a uma capacidade de interligar essa racionalidade com o nosso quotidiano de uma forma pouco comum, mas clara e transparente, é o que torna talvez Gonçalo M. Tavares único na literatura contemporânea portuguesa.

Excerto
“Cohen era alguém que dominava por completo a cabeça ou, pelo menos, a parte da cabeça que se liga aos actos voluntários. Não era louco. Pelo contrário, Cohen ensinava na Faculdade de Letras. Era um respeitado professor; também gozado, claro, mas respeitado intelectualmente pelos seus escritos, pelos seus estudos – a escrita, era de facto, a única maneira de ele estar presente sem o seu corpo o deixar embaraçado, o seu corpo indócil e incontrolável. Aliás, em Cohen a dedicação crescente à escrita era consequência dessa inabilidade estrutural do corpo. Quando escrevia não tinha tiques ou, pelo menos, se os tivesse era um daqueles lá em cima, nas sobrancelhas – o de as levantar várias vezes. Mas sem espectadores, sem testemunhas, esse tique era nada – e nada o envergonhava.” p.36

21 de dezembro de 2010

# untitled - love #

adormece a leve sombra do teu abraço,
impressa na parede junto à margem.


seguro-te a cabeça num refúgio de sono
e penduro o teu beijo, logo acima do queixo.
no chão, quebradiças folhas de outono:
um amarelo acobreado no silêncio da calçada.


peço-te baixinho:
não digas nada,
que as águas do rio
soletrarão o nosso destino
n-a d-i-r-e-c-ç-ã-o d-o m-a-r.

20 de dezembro de 2010

Não é um passe de Antologia, é uma revista

Emanuel Amorim, Gonçalo Mira e Nuno Fonseca criaram a ANTOLOGIA, uma revista de contos.
Segundo informação dos editores "a Antologia é uma revista semestral de contos que nasce da vontade de criar um espaço digno para este género. Tem como objectivo a publicação de inéditos de autores portugueses contemporâneos, não deixando de publicar, sempre que oportuno, autores clássicos ou estrangeiros. Não se restringe a um registo: tanto poderá encontrar nas suas páginas um conto realista como um de ficção científica. É generalista, sem, no entanto, perder de vista a qualidade, o seu único critério."
No site www.revistaantologia.com podem consultar mais detalhes sobre o projecto.

Mohs e a sua escala

o poema mais científico que conheço, para avaliar do seu grau de dureza.

talco
gesso
calcite
fluorite
apatite
ortóclase
quartzo
topázio
corindo
diamante

sendo o sistema de saúde tendencialmente gratuito, esta escala é tendencialmente dura.

19 de dezembro de 2010

Nuno Moura: "A fluência de Magda - the new cochicho"

         destinatário alexandre o'neal:


um suicida deixou escrito
ando-me a vingar.


um mal despedido pediu
em tribunal só
que o deixassem ir buscar
as suas últimas coisas
o livro à descoberta de portugal
edição digest
e uma amostra de perfume carminho.


uma amante atrasou-se uma vez
e ele furioso casou com ela.


uma amante atrasou-se uma vez
e ele furioso foi logo divorciar-se.


favores de sangue borrado
dão enlatada na goela.


perante a lei romana do mercado
a igreja prepara agora os primeiros poetas digitais.


um pintor suicida deixou escrito numa pedra
se eu tivesse uma tela tamanho gêtrês
iam perceber.


um amigo dizia ao outro
caso com ela
mas é metade para cada um.


um senhor de idade diz
aceite um último gesto deste cavalheiro
e a senhora de idade responde
abafe-me então.


um comité analisa se as razões pelas quais
nos separamos
são as mesmas pelas quais nos juntamos.


deram mais um poeta
como incapacitado para sentir.


as montanhas azuis da austrália desbotaram
revelando em tamanho autedóre
os princípios originais do senhor não deverás.


não atropelarás não integrarás não passarás
não repugnarás
não te sairá pela culatra
não desmanches que é para mais tarde recordar
não procures água na lua
vai-te casar e está quieto
quem é teu amigo quem é


este trabalho estava inexplicavelmente assinado num canto
por comissão de festas do olimpo
(também se conseguiu saber que o grupo de cantares de
cabaréte
actua às sextas por cima do reino das dinamarquesas
toma nota)


a selecção nacional de poetas seniores continua a empatar
e a de esperanças a não apresentar soluções no ataque.


não é que parta isto tudo
mas reguila.


ps:
oeiras vai ter uma alameda dos poetas
no ano dois mil.
isso ri-te.

in Os livros de Hélice Fronteira, "gosto das mesmas palavras que tu" Mariposa Azual

16 de dezembro de 2010

encruzilhada

o fogo que nos dilacera por dentro.
a angústia, o fim, a calma que afaga os sentidos:
despojos lúcidos perdidos.
o âmago insolúvel e por vezes insondável do nada
que nos permite sermos nós próprios
a desistirmos daquilo em que acreditamos.


liberdade: olhos abertos sem algemas
e as mãos unidas, num punho fechado e ausente:
dedos encruzilhados entre a angústia e o fim.

Carlos Pinto Coelho (1944-2010)

8 de dezembro de 2010

Cormac McCarthy: "Este país não é para velhos"

Um  homem, Llewelyn Moss, no meio do deserto inicialmente à caça de antílopes, apodera-se de uma mala cheia de dinheiro e leva-a para casa. Atrás de si ficou um rasto de destruição, resultado de um negócio de droga que correu mal na fronteira do México com os Estados Unidos. Levar a mala consigo pode ter sido o maior erro da sua vida. Isso ou voltar lá no dia seguinte num acto de misericórdia. A partir desse momento tudo será diferente na sua vida: será perseguido por Anton Chigurh, um sociopata que parece não poder ser destruído por nada, mas que destrói tudo à sua volta; por Carson Wells, outro atirador contratado para recuperar o dinheiro; e ainda, mas num sentido diferente, pelo xerife Ed Tom Bell, um homem em constante contradição entre o que faz ou quer fazer e o que pensa, que parece não se ter conseguido adaptar aos novos tempos. O xerife ao resolver o crime de droga, tenta arranjar uma solução para Moss e para a sua mulher que também teve de fugir por medo de represálias. 
Cormac McCarthy, com este romance escrito em 2005, e que passou a filme pelos irmãos Coen (quatro óscares em 2008: filme, realizador, argumento adaptado e actor secundário, neste caso para Javier Bardem) traça-nos, muito ao seu estilo, uma América dos anos oitenta crua, violenta, com muitos vícios e loucura onde o fim justifica os meios.

Jeff Buckley: lover, you should've come over

Lonely is the room the bed is made

The open window lets the rain in
Burning in the corner is the only one

Who dreams he had you with him
My body turns and yearns for a sleep
That won't ever come
It's never over,
My kingdom for a kiss upon her shoulder
It's never over,
all my riches for her smiles when I slept so soft against her...
It's never over,
All my blood for the sweetness of her laughter...
It's never over,
She's a tear that hangs inside my soul forever...
But maybe I'm just too young to keep good love
From going wrong
Oh... lover you should've come over...

7 de dezembro de 2010

David Mourão-Ferreira: excerto de Gaivotas em Terra

Início da novela Casal Venha Lisboa. Fez-me lembrar "os anões" de Harold Pinter. Mais um para reler.

"- E Roma? Que tal?
Em Roma tinha estado apenas uma horas.
E vinha com os nervos arrasados: que pesadelo a noite em Nairobi!
- Em Nairobi? - perguntou ele.
- Sim... No Quénia. A capital do Quénia. A terra dos Mau-Mau.
- Ah!
- Que horror! Que horror!
Dalila declamava. E, por baixo das palavras, arranhava-se o mito: Dalila parecia declamar o papel de Clitmnestra. Era isso: Clitmnestra.
- Chega?
- Chega.
Interrompera a narrativa para lançar nos copos mais dois dedos de uísque.
- Gelo?
Sertório fez que sim com a cabeça.
- Água?
- Um pouco. E tu?
- Não! Agora, não. Puro! Puro!"

5 de dezembro de 2010

Conto: os olhos do meu pai

A minha mãe levantou-se e olhou na direcção da figura franzina: um enrugado de sentimentos misturados entre alegria e alívio. os flancos da alcofa cobertos pela brancura de um lenço a cheirar a desinfectante. os sentimentos enrugados conjugavam-se na forma de pequenos braços e pequenas pernas; esticavam-se numa tentativa frustrada de expulsar a preguiça. olhei à volta aproveitando os poucos momentos em que me era permitida a existência no quarto. o meu pai ordenou que me sentasse. disse-me para não incomodar, como se a minha respiração pudesse acordar todos os doentes em coma do hospital.
No hospital não se faz barulho, nem se brinca.
encolhi-me: vagueei ligeira pelo quarto procurando onde me sentar. finalmente uma cadeira branca tapada por uma cortina e perdida num canto do quarto. sentei-me e mirei os sapatos que não chegavam ao chão. os sapatos pretos e luzidios. não os largava, eram a minha prenda por ter feito a segunda comunhão.
Nos dias de hoje oferecem-se prendas até para que os meninos rezem, rezou a minha madrinha, no dia em que os experimentei no chão frio da igreja. os sapatos brilhavam quando o sol lhes batia. olhei de novo para cima colocando-me em escala: o meu pai uma árvore abanada pelo vento; a minha mãe estava mais calma. sorria para mim. devolvi-lhe o sorriso. no sorriso da minha mãe via o mar. por isso olhava muitas vezes para ela. porque gostavámos da praia. o meu pai não. não sei o que via nos olhos do meu pai, mas não era o mar. a enfermeira que nos fazia companhia saiu do quarto depois de acomodar novamente a minha mãe na cama. o meu pai continuava nervoso. fez festas na testa da minha irmã. ainda não tinham decidido o nome. ou não o tinham dito em voz alta. pegou em mim ao colo e inclinou-me sobre a alcofa.
A tua irmã é muito bonita. Tu também, mas a tua irmã é diferente. ouviu-se um barulho atrás de nós: o avô espreitava da porta e os meus pés pisavam de novo o chão do quarto para receber um beijo na testa. depois desse breve momento a alcofa uma ilha rodeada de beijos e abraços do avô, do pai e de quem aparecesse. o meu corpo um pequeno barco à deriva. sem bússola e sem norte.
não sei o que via nos olhos do meu pai mas não era o mar. o meu pai...a partir daquele dia, simplesmente deixou de ver os meus olhos.

2 de dezembro de 2010

Concursos de contos: Alfarroba e FNAC/Teorema

Para os que gostam de escrever contos, dois concursos:

Um pela Editora Alfarroba. Lançado em Setembro e com Inscrições até 15 de Dezembro. Mais info aqui.

E o da FNAC Teorema. Inscrições até 31 de Janeiro. Regulamento disponível aqui.

Bom meio de promoção para este género literário pouco "amado" e divulgado em Portugal.