23 de fevereiro de 2010
Conto: ilusão
Desço a rua e entro na mercearia. antes de me sentar por detrás do balcão ouço um barulho: alguém apita lá fora. volto a sair. trazem-me as mercearias da semana. no passeio tropeço no Samuel, o que me surpreende: aparece-me como uma ilusão do sol, um espelho mal colocado que se reflecte e me fere a vista. ele não se queixa: reconhece-me pelo peso dos meus passos e apenas se chega para o lado dando-me a entender que não quer incomodar. detenho-me uns minutos a falar com ele depois de descarregar a mercadoria, enquanto a carrinha se afasta para outro canto da cidade. pergunto-lhe como estão as coisas lá por casa. ele responde a medo, sem conseguir articular bem as palavras: o senhorio deixou-os ficar mais dois meses sem pagar a renda e a mãe já reconhece os vizinhos e algumas pessoas da família. a perda de memória é uma coisa horrível mas é uma coisa com que se vive. Com a morte vive-se pior, disse-me a minha mãe antes de morrer. despeço-me do Samuel e entro. não gosto que entre na mercearia. perde-se na imensidão dos produtos que agora arrumo nas prateleiras: o sabão para o tanque frio da roupa onde mulheres com calos agitam os braços para afugentar o frio; o feijão para a sopa do jardim-escola que fica ao virar da esquina; ou a fruta que tombará na lancheira vermelha, com o rato Mickey estampado em posição jocosa. depois de separar os produtos por género, tamanho e feitio, pego numa maçã do cesto para a vir saborear cá fora. no passeio vejo de novo o Samuel. ainda não foi embora. levanta-se quando me sente perto. passo-lhe a maçã para a mão, digo-lhe que já é tarde e tento-me despedir com um aviso afirmativo: Não te esqueças da lancheira: o rato mickey não gosta de almoçar sozinho. ele respondeu de pronto: Avô, levas-me a casa? Não vieste sozinho para cá? O caminho é o mesmo, só que ao contrário. Sim, mas agora está mais escuro, e como dizia a minha mãe antes de perder a memória: quando eu me for, a única luz que verás será a voz do teu avô, e os únicos raios de sol virão das suas mãos. A tua mãe devia-se ter dedicado à poesia em vez de falar da vida dos outros. depois de ouvir calmamente a minha resposta, dobrou a bengala em quatro partes iguais, ajeitou os óculos escuros e prendeu a sua mão na minha fazendo força até os meus passos acompanharem os dele. não me deu tempo para fechar a mercearia: no final de contas, a poesia nunca teve horários.
18 de fevereiro de 2010
Conto: telhado com clarabóias
Há dois dias atrás podia afirmar que vivia numa casa com vista para o mar. uma casa normal: com portas, janelas, um telhado com clarabóias para deixar entrar mais luz. no quarto, afastada uns bons três metros da cama, a secretária de mogno onde estavam pousados os contos inacabados para enviar ao meu novo editor. na sala, a mesa de bilhar onde jogava umas partidas quando o meu pai vinha de visita. a semana passada retribuí-lhe a visita depois de muita insistência. talvez isso me tenha salvo a vida. é comovente pensar como um pai pode tentar salvar um filho mesmo sabendo estar condenado ao fracasso. ao fundo da sala ficava a lareira, onde lia à noite acompanhado de um Porto. por cima da lareira a última fotografia que tirámos juntos, tu e eu, exactamente em frente a esta casa de que agora te falo. tenho consciência do ridículo de te descrever a casa pela qual nos apaixonámos na nossa primeira visita à ilha, a casa que tu própria decoraste e à qual deste vida própria. há dois dias atrás, para além de casa, ainda tinha vida, porque ali habitavam todas as memórias da nossa existência em comum. ali guardava o que me prendia a esta ilha em que se transformou a sociabilização da minha alma depois de... as restantes pessoas simples gotas de água do oceano, irrelevantes para terem significado mas que nos conseguiram separar. irónico o mesmo elemento que te afastou de mim levar agora as únicas lembranças físicas que me restavam: as mil e uma cartas, as conchas com o nosso nome escrito e pintadas à mão com uma inocência infantil, a fotografia das nossas pegadas na areia levadas no segundo seguinte pelo mar. da nossa casa apenas resta o telhado, ancorado numa rocha, virado com a barriga para cima numa posição submissa perante o destino, com as entranhas à mostra e os vidros das clarabóias todos quebrados.
exactamente como eu.
exactamente como eu.
16 de fevereiro de 2010
Conto: aquele cão que
Sempre gostei de animais, sobretudo de cães. todas as relações que tive com os da minha espécie ficaram aquém das expectativas: ou confiei de mais e depois saí desiludido com o resultado, ou confiaram de mais em mim e eu não era bem aquilo de que estavam à espera. com os cães nunca tive esse problema: comem, dormem, precisam de ir à rua uma ou duas vezes por dia e andam atrás da cauda quando lhes pára o relógio. do último cão que me ficou na memória não lhe conheci os hábitos em detalhe: não sei se comia muito, se dormia muito, se ía muitas vezes à rua. mas parava-lhe o relógio. há cerca de dois meses, zanguei-me com o televisor e atirei-lhe com o comando: nenhum dos cem canais do cabo me agradava. peguei num livro. tinha comprado na semana anterior Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar de Lobo Antunes. quando me sentei a ler ouvi um latido, e depois outro e ainda outro. não parava. o cão ladrava e no fim acabava com um pequeno uivo, quase a medo, mas que era alto o suficiente para o ouvir no andar de cima. esperei cinco, dez minutos mas não havia maneira de o cão se calar. não tinha avançado mais do que duas páginas e precisava de me concentrar: comecei a ler em voz alta, de modo a que o cão me ouvisse tanto como eu o ouvia a ele. parava em cada pausa para recuperar o fôlego e lia cada frase cada vez mais alto como se estivesse perante uma sala cheia de ouvintes. por entre as minhas palavras deixei de ouvir o cão. calei-me também. o cão voltou a ladrar e eu voltei à minha leitura em voz alta, parando apenas passado meia hora quando a minha garganta se assemelhava a um rio desértico no pico do Verão. entretanto ouvi o barulho de uma porta a fechar. a dona do cão, com quem me cruzara uma ou duas vezes se tanto, tinha chegado. nas semanas seguintes o ritual repetiu-se: a dona saía, o cão ladrava: eu pegava no livro e lia em voz alta: o cão calava-se e ouvia. ficávamos nisto até a dona chegar. há cerca de quinze dias deixei de o ouvir. senti a dona sair e fiquei em suspenso. irritou-me o facto de não o ouvir ladrar. que direito tinha ele afinal para não ladrar quando a dona saía? deixei passar uma, duas semanas, até que hoje ganhei coragem para falar com a dona. ouvi a chave da porta do seu apartamento a ganhar vida e um estrondo abafado no andar de baixo. desci apressadamente e fiz-lhe notar a minha presença com uma tosse que acordou as aranhas no corrimão das escadas. ela virou-se e encarou-me. perguntei-lhe pelo cão e expliquei-lhe o que se passava: sempre que ela saía o cão ladrava, mas quando lia em voz alta Lobo Antunes o cão calava-se. ela olhou para mim como olharia um psiquiatra pronto a internar-me e recomeçou a descer as escadas. falei de novo, desta vez num tom de voz mais alto: Percebeu o que eu disse? Os livros do António Lobo Antunes... ela interrompeu-me: Oh meu filho, qual lobo, qual raposa. Eu gosto é de novela. E não sei se o meu cão gostava assim tanto desse lobo. Há duas semanas deu-lhe um demónio no corpo e mandou-se da varanda quando saí para tomar café. Passe bem. dito isto virou-me as costas, com o rabo a gingar pelas escadas abaixo. regressei ao apartamento e fechei a porta. peguei no livro e sentei-me a ler no sofá, em silêncio, e a pensar que não seria má ideia retomar as minhas relações com outros humanos: ao menos sei com o que posso contar.
7 de fevereiro de 2010
Conto: serpente e gazela
Encosto-me no sofá com a cabeça sonolenta e as mãos unidas entre as pernas. o meu corpo um feto por nascer. uma taça de gelatina esquecida no fim do casamento, tremendo em cima de uma bandeja. Sossega. Sossega que te faço carinhos na cara, disseste tu de manhã, depois de me largares o pescoço. ironicamente ou não, nunca ouves o que te digo. não respondes às minhas perguntas. não ouves as minhas respostas. o nosso filho, a brincar em frente à lareira, com a coroa em papel que trouxe da escola. os joelhos esfolados numa alegria desconfortável ignorando também as tuas respostas e as minhas perguntas. assomo à janela. o frio passa pelas frestas na direcção da minha cara e aninha-se a um canto da sala. um arrepio trilha-me a espinha. a mangueira da rega serpenteia amarela pelo jardim. finalmente recolhe-se e enrola-se no apoio aparafusado na parede, como se esmagasse uma gazela indefesa. na cozinha a comida, desajeitada na espera, esfria no prato. entras. sinto a tua respiração quando fechas a porta e penduras o casaco no bengaleiro: os teus braços, as tuas mãos pairam no ar num sussurro doentio. o último quadro que pintei encostado na arca aos pés da cama: o teu corpo no quintal com uma cruz dissimulada no último centímetro de terra. segues directo para o quarto, sem comeres, sem tomares banho, sem dares um beijo de boa noite ao teu filho. o filme passa em fastforward: chamas-me. entro e deito-me na cama. abro as pernas e entras dentro de mim como um pêndulo de relógio: tic-tac tic-tac tic-tac. mecânica. pura mecânica. a explosão da mina no meio do mato. o teu peso a afundar-se na cama. uma lágrima nos lençóis. a casa toda por arrumar. a nossa vida por arrumar. a garrafa de vinho na cozinha. os talheres desarrumados por cima dos pratos.o bengaleiro caído no meio do corredor. sais. chego-me de novo à janela. esfrego as mãos e sinto o metal. tento atirar o anel pela janela, mas uma barreira de vidro impede-me. o aro de ouro roda desamparado por entre as pernas. deito-me novamente no sofá: o meu corpo uma taça de gelatina que esqueceste no dia do nosso casamento, tremendo em cima de uma bandeja. no topo da gelatina um desenho moldado pelos anos: a serpente esmagando a gazela até esta deixar de respirar.
1 de fevereiro de 2010
Conto: acidente (II)
Depois do acidente fiquei ao cuidado do meu avô. a nossa relação até àquela data tinha sido uma relação convencional de avô e neto. só naquela altura lhe dei a importância que achei que ele nunca teria: seria um pai para mim. e porque todos acharam que tinha ficado muito afectado com o acidente fizeram com que mudasse: de escola, de casa, de amigos. mudei até a minha maneira de respirar. no que dizia respeito ao que eu pensava em relação a mim próprio tinha pensamentos contraditórios: saíra-me um fardo das costas, uma sombra que me fazia sumir todos os dias, mas de cada vez que olhava ao espelho levava um soco no estômago: aquele não era eu.
à medida que os anos foram passando, aquele cheiro a óleo a pingar no chão da garagem foi-se impregnando na minha pele: entranhou-se nos meus poros. aos poucos e poucos tornou-se parte do meu cheiro e da minha própria personalidade: nauseabunda e gasta. não raras vezes acordava a meio da noite todo transpirado: as paredes do meu quarto transformadas nas paredes da garagem, e era aí que eu via o pára-choques ainda encostado e a mancha de óleo no chão.
veio-me este pensamento à memória quando o meu avô foi internado. tivera um ataque cardíaco e segundo os médicos o prognóstico não era favorável. mas tinha-me afeiçoado de mais a ele para o deixar morrer. lembrei-me então que o avô sempre gostara de poesia. de declamar os seus poetas preferidos. nessa altura eu soletrava as letras das palavras que ia aprendendo, daquelas que não se aprendiam na escola.
a maneira que encontrei para ajudar o meu avô foi então a de me sentar todos os dias ao seu lado. independentemente de quem lá estivesse eu pedia para me sentar à cabeceira da sua cama, abria um livro e declamava os seus poemas, os que me tinha lido ao longo dos anos; os que me tinha ensinado; os que eu sabia que ele sabia de cor e que amava. e não desisti. nos quase cinco meses em que esteve hospitalizado o meu avô recebeu a visita de cento e quarenta poetas: um por cada dia de internamento.
finalmente o avô recuperou. fez questão de sair pelo seu pé e eu fiz questão de sair com ele. à saída do hospital, antecipo os meus passos aos dele na passadeira comprida, e nos breves segundos antes de morrer, vejo a parte da frente de um autocarro vindo em zoom acelerado na minha direcção. os meus olhos binóculos invertidos com lentes gigantes. no fim desses breves segundos o meu avô olhou para mim e viu-me como há vinte cinco anos atrás tinha visto o filho, como fazendo parte de uma sanduíche de ferro e de pedra que o motorista do autocarro comeria quando acabasse o turno.
foi pelo menos isso o que pensei e que no fundo me apaziguou o espíríto: que tinha salvo o meu avô com poesia e que sempre que ele declamasse um poema no futuro, se lembraria de mim.
à medida que os anos foram passando, aquele cheiro a óleo a pingar no chão da garagem foi-se impregnando na minha pele: entranhou-se nos meus poros. aos poucos e poucos tornou-se parte do meu cheiro e da minha própria personalidade: nauseabunda e gasta. não raras vezes acordava a meio da noite todo transpirado: as paredes do meu quarto transformadas nas paredes da garagem, e era aí que eu via o pára-choques ainda encostado e a mancha de óleo no chão.
veio-me este pensamento à memória quando o meu avô foi internado. tivera um ataque cardíaco e segundo os médicos o prognóstico não era favorável. mas tinha-me afeiçoado de mais a ele para o deixar morrer. lembrei-me então que o avô sempre gostara de poesia. de declamar os seus poetas preferidos. nessa altura eu soletrava as letras das palavras que ia aprendendo, daquelas que não se aprendiam na escola.
a maneira que encontrei para ajudar o meu avô foi então a de me sentar todos os dias ao seu lado. independentemente de quem lá estivesse eu pedia para me sentar à cabeceira da sua cama, abria um livro e declamava os seus poemas, os que me tinha lido ao longo dos anos; os que me tinha ensinado; os que eu sabia que ele sabia de cor e que amava. e não desisti. nos quase cinco meses em que esteve hospitalizado o meu avô recebeu a visita de cento e quarenta poetas: um por cada dia de internamento.
finalmente o avô recuperou. fez questão de sair pelo seu pé e eu fiz questão de sair com ele. à saída do hospital, antecipo os meus passos aos dele na passadeira comprida, e nos breves segundos antes de morrer, vejo a parte da frente de um autocarro vindo em zoom acelerado na minha direcção. os meus olhos binóculos invertidos com lentes gigantes. no fim desses breves segundos o meu avô olhou para mim e viu-me como há vinte cinco anos atrás tinha visto o filho, como fazendo parte de uma sanduíche de ferro e de pedra que o motorista do autocarro comeria quando acabasse o turno.
foi pelo menos isso o que pensei e que no fundo me apaziguou o espíríto: que tinha salvo o meu avô com poesia e que sempre que ele declamasse um poema no futuro, se lembraria de mim.
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