A mulher tinha-lhe dito ao telefone que era ali que a encontraria. Entra. Amanhã, às seis da tarde em ponto, entra no bar, tal como combinámos. o bar era acolhedor e de tamanho reduzido. L. nunca lá tinha entrado, e tal como noutras ocasiões em que desconhecia o seu destino, antecipou-se na hora de chegada para não correr o risco de se atrasar. o relógio na parede do bar, com uma pintura abstracta a colorir o fundo, marcava dezassete horas e quarenta e cinco minutos. a mulher disse-lhe também que esperasse por ela sentado na mesa do canto e que pedisse uma carta. depois de se sentar num cadeirão antigo demasiadamente desconfortável para a magreza dos seus ossos, olhou em volta e um pequeno homem ergueu-se como que por magia por detrás do balcão: a cabeça era anormalmente grande para o resto do corpo e andava de uma maneira estranha, como se alguém o puxasse constantemente para trás. quando se abeirou da mesa onde L. se tinha sentado, acenou apenas com a cabeça e L. pediu a carta, esperando que o empregado soubesse o que queria ele dizer com aquilo. o empregado voltou a acenar com a cabeça num gesto mecânico, deu meia volta, esticou-se todo por cima do balcão dando um pequeno salto de canguru, vasculhou cegamente, regressou num passo arrastado e postou-se hirto durante breves segundos na frente de L. pendurou então o braço direito no ar, como que suspenso por uma mola numa corda de roupa invisível, e num gesto abusivamente solene entregou a L. um pequeno papel dobrado onde se podia ler em letra pequena mas bem legível: “Vou chegar ligeiramente atrasada. Pede o bolo de chocolate. Saboreia-o e a seguir pede outra carta.” embora o bolo de chocolate não fosse dos seus preferidos e nunca tivesse sido dado a jogos infantis, L. não quis contrariar a vontade da mulher e pediu o bolo. afinal, estavam ali para celebrar o aniversário de casamento. o empregado deu um passo atrás como se tivesse sido pisado e perguntou: Tem a certeza? Sim, tenho a certeza. Se pedi bolo de chocolate é porque quero bolo de chocolate. Mas tem mesmo a certeza? Temos também uma óptima tarte de maçã. Quero bolo de chocolate, afirmou peremptoriamente L. É o que aqui está escrito. Bem, se aí está escrito faço-lhe a vontade com todo o gosto, disse o empregado meio zangado e de nariz petulante. Em seguida e num movimento contínuo, deu uma nova meia volta de bailarina e dirigiu-se ao balcão. Voltou passados uns minutos com um prato simples mas bem decorado. Bom proveito. É da casa? Não, não. Esse veio de encomenda. se antes de L. pôr o garfo à boca, o empregado o tivesse ouvido confessar em voz alta que o bolo de chocolate não era um dos seus preferidos, e depois tivesse visto a forma como esfolou o prato até raspar no vidro, tomá-lo-ia por um mentiroso, mas o bolo devia estar realmente uma delícia. No fim da primeira surpresa L. emparelhou os talheres de um dos lados do prato e pediu a nova carta. ficou no entanto com a ideia que o empregado não o ouvira, mas isso talvez se devesse ao volume da música ambiente que pelo que parecia a Luís abanava de forma exagerada as paredes falsamente rústicas do bar. em poucos minutos o ambiente tinha-se tornado pesado, e embora L. não tivesse pedido nada para beber, parecia que tinha esvaziado o balcão, tal era a neblina que agora lhe cegava os olhos. no bar, apenas outro cliente que entrara depois de L. passados uns minutos. L. reconheceu-lhe as feições mas não conseguiu precisar de onde. o outro homem parecia ter optado pela tarte de maçã e olhava meio desconfiado para as pepitas de chocolate abandonadas no prato de L., como se o culpasse do pecado de ter ficado com a única fatia de bolo de chocolate no mundo. mas também ele parecia comer com gosto a tarte de maçã que lhe tinha calhado na roleta russa. L. fez então um novo esforço para endireitar as costas na cadeira de modo a ganhar novo folêgo e pediu em voz alta a segunda carta. o empregado voltou com uma expressão meio desfocada, ou então era Luís que via já tudo o que se mexia dessa perspectiva. L. abriu os olhos na direcção das mãos, e leu de forma pausada, aproximando e afastando o pedaço de papel, como se num dado momento as letras fossem gigantes e no momento seguinte tivessem um tamanho liliputiano. “Espero que tenhas gostado da tarte de maçã. Fi-la com todo o amor. Tem cuidado.” a mulher de Luís entrou passados uns segundos, olhando para os dois lados do bar, abanando a cabeça, e levando as mãos à cara. agora sim tudo se quedava completamente desfocado e uma dor no peito, lenta e agonizante, enchia o último suspiro de L. antes de este reconhecer o homem que tinha ficado com a sua tarte de maçã, ver um pequeno pedaço de papel cair-lhe das mãos, perceber que tinha chegado fatalmente cedo ao encontro com a sua mulher e fechar pela última vez os olhos.
24 de março de 2010
21 de março de 2010
Conto: pausa
Conheci-a numa paragem de autocarro. conhecer é um modo de dizer já que naquele dia trocámos apenas duas palavras cada um. Bom dia. Bom dia. respondeu ao meu cumprimento apenas para ser gentil, porque pela sua cara o dia não lhe estava a correr bem. era uma mulher bonita mas a gabardine tapava a maior parte do seu corpo. apenas distinguia as suas pernas da canela para baixo e o início dos pés entalados nuns sapatos pretos. estava suficientemente perto de mim para lhe sentir o hálito de tabaco. uns minutos antes tinha atirado um cigarro quase acabado de acender para a sarjeta que absorvia ainda lentamente a muita chuva que tinha caído uma meia hora antes. o seu telemóvel tocou. atendeu-o como se estivesse sozinha na paragem: Sim, sou eu. Quem mais querias que fosse? Ela? pausa. Olha, vai-te foder mais as tuas desculpas. É sempre a mesma lengalenga. No fundo vocês homens são todos iguais. Quando estão com outras mulheres e sempre que podem só pensam com o que têm no meio das pernas. pausa. E depois do caldo entornado vêm com as falinhas mansas: “Juro que foi a primeira” e “Nunca te quis magoar”. E depois, quando já não o podem negar: “Querida, prometo que foi a última vez.” quase pausa. Cala-te que agora sou eu que falo e vais-me ouvir até ao final. Não me interessa o que é que a minha mãe diz. Sou adulta e ela já não manda em mim há muitos anos e não a chames à baila só porque ela sempre gostou de ti. nova pausa. os seus cabelos abanavam-se de fúria mais do que pelo vento e os pequenos raios de sol que conseguiam vencer as nuvens amaciavam-lhe a pele de contornos suaves. o tom da sua voz era no entanto cada vez menos macio e cada vez mais alto e a minha curiosidade pela conversa e pelo seu cheiro ia-me aproximando do seu corpo como um íman de coscuvilhice da vida alheia. a pausa foi curta e ela voltou à carga para o que parecia ser a última estocada no seu oponente debilitado e moribundo. Já te disse ontem que tens até ao final da semana. Não quero saber que não tenhas para onde ir. Por mim podes ir morar para debaixo da ponte, desde que não te ponha mais a vista em cima. pausa. Olha, estou farta disto. Vai-te foder mais a tua vidinha. desligou o telemóvel e falou em voz alta para ninguém em particular mas sabendo que eu a ouvia. Os homens são mesmo uns filhos da puta. quando olhou para mim no fim da frase e sorriu, sabia que me tinha chamado a atenção, mas também sabia que se ficássemos juntos não a traíria. era muito complicada e um bocado chata de ouvir. para além de que sempre fui muito cioso da minha privacidade para ver a minha vida, mesmo não o sabendo, discutida numa paragem de autocarro.
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