26 de janeiro de 2010

Conto: acidente

Os meus pais morreram há vinte e cinco anos num acidente de carro. ao contrário do que rezaram as notícias, o meu pai não se esbarrou contra uma parede. pelo que me contaram mais tarde, o culpado foi o motorista de uma camioneta que entre o mar e o carro, preferiu esmagar os meus pais: como se preparasse uma sanduíche de ferro e pedra para comer depois de acabar o turno. gostava do meu pai. era um gostar verdadeiro, quase humano. olhava para ele com orgulho quando se sentava junto à lareira da sala e abria o jornal. mas também gostava quando ele saía. e o meu pai saía muitas vezes. nessas alturas podia brincar à vontade. a sala era o meu reino privado. a minha mãe não perguntava ao meu pai aonde ele ia porque já sabia a resposta. concentrava-se apenas na banca da cozinha enquanto arrumava os pratos do jantar. pelo ralo via a relação de ambos a escoar-se junto com os restos de comida. e eu tentava segurar-me às mãos da minha mãe, para não me perder misturado com as ondas do mar e a espuma do detergente. quando o meu pai estava em casa e não se sentava à lareira, tinha por hábito bater na minha mãe. para ele era mesmo um hábito, uma rotina, como desfazer a barba ou comprar o jornal no quiosque logo pela manhã. comecei a aprender as alturas em que o meu pai não se ia sentar à lareira, pela maneira dele andar, pelo barulho dos seus sapatos no soalho. escondia-me então no quarto e tapava as orelhas. enrolava-me debaixo da cama para ter a certeza de que os gritos vinham do outro lado do mundo. e descansava o sono, já que os meus olhos não se conseguiam fechar enquanto a minha mãe não abrisse a porta do quarto.
na garagem da nossa antiga casa, continua encostado à parede um dos pára-choques que pertenceu ao último carro do meu pai. no chão, a mancha do líquido que verteu em cascata duas horas antes de eles saírem. vi-o cair, gota após gota após gota, e embora não soubesse que tubo tinha rebentado, não era isso que me impedia de sorrir. a sala seria para sempre o nosso reino privado. nesse dia a minha mãe ficou de me levar à escola. preferiu no entanto ir com o meu pai escolher uma prenda para o meu aniversário, quando a única prenda que eu queria era olhar para ela, e sorrir-lhe sem as mãos a taparem-me as orelhas.